sábado, 1 de maio de 2021

Um mundo, muitos mundos

Reaprendendo a escrever. Um pouco por narcisismo, sim. Mas também por uma questão terapêutica.

Letra por letra, linha por linha. Vamos devagar, sem pressa. Dedo médio faz a vírgula, anelar, o ponto. Nesse ponto me recordo que meu dedo mínimo é literalmente mínimo: precisa de uma esticadinha a mais para alcançar o pê ou algum si bemol, dependendo do acorde.

Coisas que fazemos com os dedos, com as mãos e com a mente. Talvez com o coração, dirão alguns. Mas ultimamente coisas perigosas estão sendo feitas com o coração.

Quero dizer, não que em algum momento da história tenha sido diferente. Não é isso. Mas é que esse é, especificamente, o meu momento. Quando Bach criou o mundo eu não estava lá. Por mais que se estude tal e tal assunto, estudar não é estar no lugar.


Estar num lugar. Essa sensação não cabe no universo. Por isso causa inquietação.

Estar num lugar é a coisa mais fácil e mais difícil do mundo. Miguilim, meu gato laranja, acha fácil, eu suponho. Eu não acho difícil (não sempre), mas ultimamente…

Vamos ver como se salva esse texto… (Essas coisas nem mudam tanto assim – é como se a mente, por cansaço ou gosto, quisesse se sentir mais velha que o corpo, e de repente percebesse que não vale o esforço).


Texto salvo. Vamos em frente.


Era pra ser “muitos mundos” mas, um só, o meu, já é mundo demais. Até me recordo de já ter tentado ver outros mundos através de “outros óculos”, mas isso não é bem assim… Se bem que, nesses últimos anos, enquanto estive calado, venho tendo a sensação de que ao menos um óculos posso tentar experimentar: o de Miguilim (o do sofá, não o do livro).

Está ali, como uma esponja amarela absorvendo a luz solar. Ele não pensa, ele não julga, e ele está irremediavelmente soterrado no momento presente. Ele reage a certos estímulos, e às vezes fica visivelmente feliz ou irritado. Entretanto, duvido que carregue essas coisas consigo quando sobe no sofá para fazer a sua “fotossíntese” da tarde. Ele só atende ao chamado do sol. Ao chamado do sol, e do saco de ração.

Ele também reconhece o próprio nome. O primeiro, pelo menos. Se você chamar por Miguilim Max Marx III, sem fazer uma pausa entre o prenome e os demais nomes, ele não identifica (ah vá, sério?). E não me surpreende – eu mesmo não me reconheceria se me chamassem por uma sucessão de nomes fantásticos.

Nesse instante ele move as orelhas na direção de onde ouviu seu nome. Então eu fico nessa brincadeira de chamar o gato, e ele prestando atenção em mim com as orelhas. Até que, de repente, ele abre os olhos e me observa meio de lado. Eu o chamo novamente, mas dessa vez ele não me diz mais nada com as orelhas – elas estão caladas. Já os olhos, estão abertos e me observando. Continuo tentando me comunicar, e ele continua imóvel me fitando. Quando finalmente me canso da brincadeira e decido parar, percebo que ele abre a boca num gigante e preguiçoso bocejo.

Agora sou eu quem observa.

Passados alguns instantes, o gesto seguinte do meu amigo felino pode ser descrito como uma belíssima aula de pilates, com o gato arqueando as costas fortemente, na pontinha das quatro patas, fazendo um vigoroso e trepidante alongamento na sua coluna em direção ao alto. O próximo exercício consiste num arqueamento da coluna no sentido inverso do anterior: patas dianteiras lá para frente, cabeça baixa com pescoço esticado, e bumbum lá nas alturas. Alonga com tanto vigor que o corpo vibra. Suponho que todos os grupos musculares estão entrando em ação, pois até as afiadas garras são firmemente expostas. Por fim, outro enorme bocejo lindamente sincronizado com o movimento de “afofar” e sentar. Um ou dois segundos de momentânea catatonia, olhando em direção ao chão, até que finalmente ele me encara com aquele olhar de velho amigo e familiar e pergunta: “como é estar no topo da cadeia alimentar?”

– O quê????

– Como é estar no topo da cadeia alimentar? Qual a sensação?

– Mas como assim????

– Eu tenho observado! Ninguém traz comida pra você. E você também não é um deus. Também nunca vi você fugindo de nenhum predador. Então, evidentemente, significa que você está no topo da cadeia alimentar…

– Mas que caralho é esse, puta merda…

– Agora vêm os palavrões. Passei anos deitado em meio àqueles livros sobre linguística, Freud, aquela pornografia barata, não lembro o autor, Marquês de alguma coisa… Eu deveria ter lido aquilo…


Agora quem estava catatônico era eu. E não foi só por alguns segundos.


– Ah, mas como eu sou indelicado. Você deve estar se perguntando porque ou como eu estou falando, não é mesmo? Eu deveria ter sido mais sutil, eu acho. Vem! Ou vou lhe mostrar. Chegue mais perto, e olhe bem no fundo do meu olho. Escolha um olho, se aproxime, e olhe bem no fundo. Tente ver a minha retina.

Eu simplesmente obedeci. Como um robô que executa um comando. Aproximei-me do sofá, ajoelhei-me, aproximei mais o rosto e procurei o fundo do olho direito de Miguilim Max Marx III. Eu não sentia nada. Só cheiros, o ar fresco da janela e os grandes cílios brancos do meu gato tocando de leve a minha testa. Eu parei de pensar.

Agora, além de não sentir e não pensar, eu também não me mexia. Não como se eu não pudesse me movimentar, mas como se eu nem quisesse. Aquele tipo de não-querer que vem do impossível, como quando você não quer calçar os chinelos e caminhar até Alpha Centauri, ali do outro lado da rua.

E o turbilhão dos sentidos foi se fechando cada vez mais. No fim eu só conseguia ver, vagamente, uma galáxia verde escuro. Era como ver, mas sem a sensação de estar vendo. Como se eu fosse mesmo aquilo, ou algo assim.

Depois do que parecia ter sido uma espécie de desmaio, a consciência me volta súbita e plena. Agora estou hiperlúcido. Percebo que não era o gato que falava, mas eu que falava para mim mesmo, através dele.

Mas não pode ser tão simples. Apesar de eu estar pleno de meus pensamentos, noto que agora me falta o corpo. Cadê meu corpo?

Estou presente, mas sem corpo. Sem o meu próprio corpo. Também não estou no corpo do gato. O verbo estar meio que deixa de fazer sentido mas, mesmo estando sem estar, reparo que tenho sensações físicas. Existe alguma máquina biológica transmitindo informações do mundo para o meu ser.

Sinto gosto. Sinto cheiros que nunca havia sentido, e os que já sentira são incrivelmente mais intensos.

Ouço coisas. Na verdade, parece que consigo ouvir todos os sons do mundo.

Vejo esquisito. Um tanto fora de foco para quem estava habituado a manter os óculos cirurgicamente limpos, mas mesmo assim vejo de maneira incrivelmente satisfatória, sobretudo os movimentos. Como se o passar de uma mosca despertasse alarmes em mim.

E sinto calor. Um calor bom. O ar morno da janela ensolarada tocando meu ser e me dizendo quantos raios tem a grade da janela pela simples relação de luz e sombra que chega até mim. Sem precisar abrir os olhos e contar.

É aqui que percebo que, apesar de consciente, ainda não consigo me mover. Não consigo fazer ação nenhuma, na verdade. Não consigo, mas não me assusto, pois é o mesmo não-querer de antes.

Então decido me entregar às sensações. Não tenho certeza se eu realmente “decidi” isso, mas gosto de pensar assim, para não precisar inventar novas palavras ou até uma nova língua que no fim só eu compreenderia…

Tristeza.

Alegria.

Fome.

Satisfação.

Dor.

Prazer.

Senti tudo isso, e coisas mais (para as quais nem me atrevo a procurar nomes) mas em nenhum momento guardei nada, pois não havia passado onde guardá-las.


E também não havia futuro para esperar. Era como o instante da Criação.


Dentro desse sonho

Sonhei outro sonho branco

Luz-sem-fim em mim


***


Vamos ver como se salva esse texto… (Essas coisas nem mudam tanto assim – é como se a mente, por cansaço ou gosto, quisesse se sentir mais velha que o corpo, e de repente percebesse que não vale o esforço).

Texto salvo. O atalho ainda é o mesmo.

Vamos em frente.


Na janela, um pequeno pássaro, frenético, saltita pra lá e pra cá. Deduzo que ele vê seu próprio reflexo no vidro, já que aqui dentro está mais escuro do que lá fora. Faço um pequeno ruído com os lábios, à maneira de um beijo, e com isso retenho a sua atenção por um instante. Ofegante, ele me vê através do reflexo… … …

sexta-feira, 9 de março de 2018

Lendo Aleister Crowley (parte 2)

O Livro da Lei propriamente dito não é muito extenso. É uma coletânea de máximas que não ocupa mais do que umas trinta páginas e se divide em três capítulos. É nesses três capítulos que se encontra todo o arsenal de frases, citações e referências explícitas ou implícitas usadas por uma multidão de artistas, músicos, cineastas, etc. (se pá até pela sua mãe!), especialmente os ligados ao movimento de contracultura dos anos 60, e de tudo o que se desenrolou a partir daí. 

O livro também conta com uma reprodução do que seria o "manuscrito original". Para quem não está familiarizado com o assunto, parece que os três capítulos do Livro da Lei teriam sido ditados a Aleister Crowley no Cairo, por uma "entidade espiritual" ou algo assim. Algo muito parecido com a "escrita automática" dos primeiros artistas surrealistas que, a essas alturas (início do XX) já causavam certo furor. Para os cristãos com saudades dos seus mortos, havia os espíritas kardecistas, que, embora não se denominavam assim, já "rodopiavam mesas" há algum tempo e psicografavam mensagens "do além" de maneira, digamos, um tanto parecida... Nesse ínterim você vê a ascensão da psicanálise, as grandes guerras, o "baby boom" americano, e por aí vai. O pessoal dos anos 60 se deleitava pescando frases de efeito do Livro da Lei que, muitas vezes, caíam como uma luva naquele momento histórico. E outras vezes podiam te colocar na lista de potenciais subversivos do FBI, ou na mira de religiões neopentecostais fanáticas... Qualquer uma dessas alternativas certamente deveria fascinar a juventude rebelde daquela época.

Mas, se ele fascinou uma juventude dos anos 60 até hoje, com certeza deixou os pais horrorizados, além de todas as pessoas de sua própria época. É curioso como ele se tornou um popstar somente depois da morte. Em vida foi odiado ou temido pela maioria das pessoas. Ao que tudo indica, a "popularização" tardia do Livro da Lei foi um dos grandes responsáveis por isso.

Mas enfim, além dos três capítulos do Livro da Lei essa tradução da Marina Della Valle, da Editora Chave, também conta com uma cópia dos originais, um prefácio muito interessante, uma introdução e um "comento" final escritos pelo próprio Crowley, uma nota editorial, uma nota da tradutora e, por último, um texto muito bom do escritor português David Soares, onde ele contextualiza o cenário dos encontros de Crowley com Fernando Pessoa à luz de cartas, documentos e fatos históricos muito bem referenciados. E, tentando fechar o livro como se fosse uma cerejinha no bolo, a tradução de Hymn to Pan feita por Fernando Pessoa. Um tanto desnecessária, mas vá lá... talvez sirva para mostrar que, mesmo que Crowley talvez não tenha passado de um milionário excêntrico, ao menos trocou umas figurinhas com um mestre da Literatura...


***

Eu li, em primeiro lugar, o prefácio, introdução, o comento, todo o resto (até o Hino a Pã) antes de ler o Livro da Lei propriamente dito (quando criança eu primeiro comia as bolachas, e deixava o recheio por último...) e, como (quase) todo mundo, só dei uma olhada no fac-símile do manuscrito...

Seguindo esse roteiro, de cara o leitor percebe que será preciso se familiarizar minimamente com o universo ocultista da época. Maçonaria, O. T. O., Golden Dawn... O que são? Onde vivem? De que se alimentam? 

Com duas googladas para tentar entender esse universo você já percebe que está à beira de um poço sem fundo. Pelo menos é a impressão que eu tive. Grosso modo, preferi resumir (para facilitar o meu entendimento), que são como clubes do bolinha com CNPJ, documentos e estatutos, onde seus membros se reúnem para fazer "coisas escondidas" como, dentre elas, a prática de "magia ritualística". Em outras palavras, para fazer Jesus chorar, do ponto de vista de um conservador ocidental moderno. Explicado porque ele era temido.

Na terceira googlada (bem como na introdução do próprio livro) o leitor vai percebendo que, além de confrontar a sociedade de então, Crowley, de diversas maneiras, também arranjara confusão dentro das próprias ordens esotéricas que participava. Explicado porque ele era odiado.

Além de tudo isso, também consta que teve uma infância dificultosa, a morte do pai, a dificuldade de se relacionar com a mãe, a "vida mansa" proveniente de uma herança. Explicado (talvez) um pouco da excentricidade e insubordinação do autor.

Na terceira parte deste texto veremos em detalhes um pouco do legado desse autor maluco, temido e odiado, que se tornou ícone de uma cultura, e que encanta adultos e assusta crianças de forma extremamente eficaz há mais de um século!

(Peço desculpas pela enrolação. Este texto deveria ter apenas duas partes, mas ocorre que o assunto acabou se mostrando mais interessante do que eu esperava, por isso eu resolvi acrescentar mais um capítulo.)

"Estou só: não há Deus onde estou." (II, 23)



segunda-feira, 5 de março de 2018

Lendo Aleister Crowlei

Eu sempre soube que um dia chegaria a esse ponto. 

Estava dormente. Só esperando uma oportunidade.

Normal, pra quem passou a adolescência ouvindo Raul Seixas gritar o nome da Besta 666 num dos discos mais influentes nessa fase da minha vida (me perdoem, eu sei, mas pelo menos não foi um disco dos Farrapos... Era o que tinha! Você me entende?)

E, convenhamos: você está lá com seus 15 ou 16 anos, sendo empurrado pela nossa "cultura" à exploração de um subemprego em meio turno (porque, afinal, gringo que é gringo não fica vagabundeando na rua, você sabe...), aquela pressão toda, o que você vai ser na vida, você só quer saber de andar na sua bicicleta mas não pode, porque você precisa "aprender a trabalhar"... Aí você se pega fechando cappeleti ou algo assim (o pessoal da minha cidade vai pegar a referência) pra um desgraçado que vai te pagar um punhado de trocados que não dá nem para um par de tênis no fim do mês, (e você sabe disso...) quando, de repente, cai em suas mãos uma fita K7 com um cara cantando Ouro de tolo... Era tudo o que eu queria ouvir! 

Não tem como isso não impactar você de forma permanente, mesmo que seus gostos mudem com o tempo. Raul Seixas já ocupou seu assento. E junto com ele vem todo o pacote. Aquela coisa de sempre... Você é o que você come, etc...

Faz algum tempo que eu não ouço o Maluco Belza, mas aquela coisa de "todo homem e toda mulher é uma estrela", "faze o que tu queres...", em vez de ir para algum canto do sótão da nossa memória acaba ficando ali, em cima de uma mesinha, que se não está no centro, também não está escondida...

Até que um dia, você está de férias e, sem querer, passa numa estante de promoções da Saraiva e bate o olho numa edição bilíngue do tal "Liber al vel Legis". 

Agora é só tirar a curiosidade.

Semana que vem continuamos!

Do what thou wilt shall be the whole of the law





quinta-feira, 13 de julho de 2017

Religio

Vou criar
um mundo
em mim
pra fugir e fingir
que tudo é assim
mesmo















Imagem: The deck of Gatti, by Osvaldo Menegazzi.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Sol 4018 *

Doce, doce
Mais doce que o Sol
- O lençol azul-celeste
Que te imita as formas,
Às vezes,
De manhã.


*Pelos 11 anos que passamos juntos. Te amo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

domingo, 4 de setembro de 2016

Ponto de virada

Ponto de virada pode ser qualquer coisa que marque uma mudança importante no rumo da vida ou na maneira como a vemos (ou as duas coisas juntas). Geometricamente falando, o ponto de virada (ou guinada) sugere que a mudança de direção ou do olhar se dê em qualquer ângulo, de uma simples correção de trajetória a um “meia volta, volver” seco e inesperado.

De certo modo, o início deste blog em 2009 se deu sob uma espécie de ponto de virada. Auge da faculdade de Letras, descoberta de autores e ideias inimaginavelmente insanos (lê-se fodas) para mim à época e, mais, de colegas e amigos, pessoas, gentes de carne e osso e cérebro, e de almas assustadoramente livres com as quais eu jamais havia topado nesse meio-de-mato bairrista e maniqueísta que, em linhas gerais, era (e É, salvo exceções) a Barbos Carcosa dos anos 2000.

A maioria dos textos (os de opinião, ao menos) seguiam um ritmo frenético, violento, de ironias e sarcasmos feitos propositalmente para ferir (por que não?) alguns baluartes do conservadorismo e deleitar meus ¾ de dúzia de fiéis leitores de então. Houve quem visse humor naqueles textos, mas provavelmente era só um tipo diferente de desespero.

Mas, buenas, tanto faz... Isso foi lá por 2009. Depois o ritmo acalmou, os assuntos não me tocavam mais e a ascensão do YouTube acabou por esvaziar de vez o pouco de gente que havia produzindo conteúdo no blogger e no wordpress. Sobraram somente os perfis mais profissionais e todo o resto caiu no mais insólito abandono da noite para o dia. Hoje resta somente um ou outro maluco que ainda alimenta seus blogs, escondidos lá nas profundezas da web, onde há tempos o Google perdeu o interesse em buscar o que quer que haja lá embaixo. Perdemos para a bolha da Internet. Você nunca mais vai encontrar algo interessante por acaso.

A “blogosfera” virou o reduto dos introvertidos (e egocêntricos também, vá lá) enquanto extrovertidos (e também egocêntricos, vá lá 2) pavoneiam-se no YouTube. E há gênios e idiotas nos dois times, acredite. O leitor que decida onde me encaixar.

Mas ainda não chegamos no ponto de virada.

O ponto é a resposta para a seguinte pergunta: por que diabos você vai voltar a falar sozinho nesse blog depois de mais de três anos de abandono? E a resposta é: eu não faço ideia. Ou, para ser mais bonito, podemos citar Renato Russo: “Alguma coisa aconteceu, do ventre nasce um novo coraçãããooooooo... Não penso em me vingar... blá, blá, blá...” (vocês gostam de citações, né?).

Talvez tenha a ver com a Casa dos espíritos, de Isabel Allende, que eu li há alguns meses. Talvez a ideia de escrever para leitores-fantasmas (como Clara fazia em seus “cadernos de anotar a vida”) tenha ficado no meu inconsciente, e vindo à tona com essa questão toda do golpe pelo qual estamos passando. Porque, sim, tenho quase certeza que ninguém vai acompanhar esse blog, exceto fantasmas.

A vantagem de escrever, (e, sobretudo, escrever para fantasmas) em vez de se expressar pelo YouTube, é que você pode desnudar sua alma com muito mais tranquilidade. Veja bem: até aqui foram 2987 caracteres distribuídos em 518 palavras, e posso afirmar com certa segurança que é possível confiar minimamente em quem dedicou seu tempo para ler tudo isso. E quem escreve por amor simplesmente confia em quem lê quase 3000 caracteres numa madrugada de sábado, sobretudo nesses líquidos anos 10 do profeta Bauman, de apelos visuais extremos e glórias instantâneas. Em outras palavras: vá desnudar sua alma no YouTube, depois me conte como foi.

Talvez essa seja a graça da coisa: se você ler 50% do que um autor qualquer escreve, você provavelmente o conhece melhor do que sua própria mãe! Se você ler 100% do que ele escreve, vai conhecê-lo melhor do que ele mesmo! Agora perceba: as coisas ficam terrivelmente mais interessantes quando seus leitores são fantasmas!

Então, para meus queridos gasparzinhos, as coisas vão funcionar assim: voltaremos a alimentar o blog. Entretanto, deste ponto em diante, ficarão de fora os textos de opinião. Volta e meia teremos alguma resenha de livro, filme ou o diabo, além de groselhas e tranqueiras, e os versos, reversos e remorsos que meus demônios julgarem importante deixar registrado em algum lugar mais nobre do que portas de banheiros.

Do lado de cá da web vamos tentar fazer melhor, porque desse ponto em diante É SÓ LADEIRA ABAIXO, amigos! E se você, querido leitor-fantasma, me encontrar na rua e tiver lido ao menos 50% do que eu deixei aqui, por favor, me conte quem eu sou!