domingo, 2 de outubro de 2011

Sabedoria infantil

     Pai e filho no velório de um parente distante. O filho, visivelmente impaciente, lá pela trigésima quinta ave-maria, não resiste e ataca:
    
     - Pai, quando é que esse tio vai para o Céu, afinal?


sábado, 24 de setembro de 2011

Documento antigo atestando a criação do mundo

Por meio deste, determino que:
pendurem-se as estrelas no céu
(e que sejam eternas, para o desepero do homem).
Armem-se de chuva as nuvens
e amarrem-se os frutos às árvores
(para o desepero dos que comem e bebem e nunca se saciam).
E que os macacos - ah, os macacos...
Que macaqueiem, macacos,
de mar em mar
(de bar em bar),
sempre rumo ao abismo
- à saída sem saída -
ao mérito pútrido dos nobéis 
e das marés das descobertas salvadoras 
(redentoras dos homens), das nações (e suas sanções).
Macaqueiem de norte a sul, 
de leste a oeste cowboy bandeirante errante, 
a passo largo e trôpego. 
Macaco trapezista, equilibra-te.
Equilibra-te pois no mundo, 
este lago insano-imundo.
Equilibra-te pois no muro
e mete no mastro tuas bandeiras
de cores mortas e estrelas rotas.
Equilibra-te pois no galho da tua própria loucura
(sem cura) e aguarda trêmulo, sim, 
o instante fatídico da ruptura, quando, enfim, 
tornarás à matéria pura.
Faça-se assim o mundo
(num instante), num segundo de olhar para o lado...
... e remeta-se cópia ao diabo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Aniversário de sete mil anos da melhor cidade do mundo

Parabéns!

Parabéns, cidadinha circense, pelo mais do mesmo de sempre, que muito tem contribuído para o desenvolvimento da nossa apeculiar cultura de homens-carro movidos a álcool e minissaias. 
 
Parabéns, cidadinha circense, pelas falanges e horas amputadas por tornos e prensas em favor do diabo. 

Cidadinha querida que me deu ao mundo, obrigado por tudo - pão e trabalho.  (Ó trabalho! Sagrado trabalho! Com as facas que eu mesmo afiei, arrancou-me os olhos que (o que foram eles, janelas da alma!) jogados no lixo das vitrines em Full-HD, fulminam agora meus pensamentos com ânsias de pulsos cortados - cordão umbilical da morte.) Parabéns, cidadinha circense-nonsense - que é tão virtuosa, mas (sobretudo) dolorosa! Parabéns! Avante! Estamos no caminho certo que Deus prometeu numa manhã calma de domingo com maçãs e vizinhas e pecados. Avante! O passado é logo ali (e não olhe para os lados)!






sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A institucionalização da demagogia

Quem acompanha este humilde blogue já deve ter observado que o objetivo do Macaco Escrevedor não é falar sobre política, necessariamente. Esse espaço não é um sítio de propaganda ou publicidade de qualquer coisa (pelo menos não conscientemente). É um espaço onde procuro compartilhar com amigos algumas parcas experiências literárias e algumas opiniões pessoais sobre um ou outro assunto, tudo dentro do espírito despretensioso e consciente de um personagem símio que sabe que o universo não mudará um átomo sequer de lugar independentemente do que aqui seja escrito, lido, comentado ou compartilhado. Mesmo assim, porém, não pude resistir e deixar de transmitir as minhas impressões sobre os últimos acontecimentos de Carlos Barbosa, desta vez, especificamente político-partidários. Os leitores que não veem atrativo nesse tipo de texto, se quiserem, podem pular daqui para o próximo site. Estarão desculpados. Aos desocupados que optarem pela aventura, é necessário esclarecer que trata-se de um assunto local, que certamente soará estranho e incompreensível ao leitor fora do contexto barbosense das últimas semanas (nossa, parece que eu tenho muitos leitores). Mesmo assim, aos que optarem por prosseguir, dedico os versos do poeta vermelho: “sigam-me os bons!”.

Há alguns dias a imprensa local decretou que Carlos Barbosa estava passando por um momento histórico (a ampliação - sem aumento de custos - do Legislativo). Também foi decretado que 90% da população era contrária a esse acréscimo no número de vereadores (com redução de salário, repito, de modo a não ferir nosso sagrado hábito de não gastar dinheiro, do povo, porque, dizem, algumas empresas nem IPTU pagam) com base numa pesquisa feita com 30 pessoas (pesquisa mui científica, por sinal, que parece ter tido a pretensão de substituir o polêmico plebiscito que fora recusado noutros tempos). Reparem que, mesmo assim, eu não questiono o resultado da pesquisa. É muito provável que esteja próximo da realidade, embora não defina o quanto essa questão seja considerada mais ou menos importante que outras. Mesmo assim, o que chama a atenção é a forma como dados subjetivos se transformam em realidade objetiva. Foi decretado que essa era uma questão vital. Assim como foi decretado que um movimento (aquele que passou no Jornal do Almoço) encabeçado por pessoas, dentre as quais algumas filiadas a partidos específicos, é um movimento apartidário (reparem, outra vez, que não me refiro à parcela da população que aderiu ao movimento, se bem que boa parte dela também é partidária, ou simpatizante, participante de grupos de juventude de partidos, etc., o que não quer dizer que acho errado participar da política partidária - errado é estar filiado e esconder isso das pessoas). Foi decretado que o movimento era a voz do povo quando na verdade, o movimento e seus apoiadores políticos ou financeiros (ou ambos, não sei) apropriaram-se de uma informação do senso comum (e compreensível), que preza pela redução sistemática do aparato político, para iniciar uma campanha eleitoral antes mesmo de definidas as coligações. Reparem, mais uma vez, que isso não significa que o movimento não seja legítimo, no sentido de promover as mobilizações que quiser em defesa dos interesses que quiser (que coincidentemente são interesses do “povo”, como dizem, mas que só agora, providencialmente, vieram à tona, deixando passar outros momentos possivelmente tão desencadeadores de “indignação popular” quanto este) - significa apenas que o movimento não é tão “apartidário” como ele próprio se desenhou e quanto gostaríamos que fosse. Prova disso foi a sessão de quarta-feira, 31, que contou com a presença do "povo", sim, mas também com a presença maciva dos chamados CCs e FGs, filiados, simpatizantes e eleitores dos vereadores decretados “favoritos”. Quem esteve lá viu o “povo” aplaudir entusiasmado o vereador Rafael Dalcin quando o mesmo, num momento de audácia poética, construiu uma metáfora aproximando a ampliação do Legislativo (sem aumento de custos, insisto) com a imagem de uma família que, para receber duas pessoas a mais, precisa comprar panelas maiores (uma metáfora que eu considero ridícula e totalmente inapropriada para a complexidade do tema e dos interesses em questão, com todo respeito ao vereador Rafael e seus eleitores) enquanto os outros dois vereadores (também contrários à proposta) mal foram ouvidos, embora tenham oferecido falas tão ou mais consistentes do que aquela.
Enquanto isso, num passeio pelo Facebook, verifiquei que chovia declarações de alguns dos idealizadores do Movimento a Voz do Povo dizendo que “no ano que vem eu sei em quem não votar”. Tais afirmações, nesse contexto, quando ditas por pessoas sem vínculos partidários, me deixa feliz, pois, ao menos, aquela pessoa parece que decidiu acompanhar a vida política do seu município (mesmo que de forma primitiva, já que é infantil escolher em quem votar ou não baseado apenas em UMA questão). Mas quando esse propagandeamento (“agora eu sei em quem não votar”, por exemplo) sai da boca de uma pessoa filiada (que justamente por estar filiada sempre soube em quem não votar, pressuponho) e que, além disso, é um dos responsáveis pelo tal “movimento apartidário” fica mais do que claro, para mim, que a intenção vai muito além de se manifestar contra essa querela de 9 ou 11 vereadores (que não vai aumentar os custos, falei de novo, e que teoricamente poderia ampliar a precária força do nosso Legislativo que, normalmente, é visto como um poder que deve subordinar-se ao Executivo, embora esse seja um assunto à parte do que eu quero expor aqui).
Considero que havia barbosenses que estiveram lá desvinculados de funções públicas e partidos, e respeito, inclusive, os partidários que estiveram presentes e que não escondem de ninguém a que vieram e a quem apoiam (ao contrário do que acontecia nos “pseudo-debates” no meio eletrônico, onde a pessoa que declarava sua posição contrária e a defendia com argumentos, ou que simplesmente apontasse o vínculo partidário de algum dos organizadores do movimento era frequentemente excluída da lista de “amigos” do movimento e o tópico em questão providencialmente deletado). Por tudo isso deixo a questão: O movimento (não as pessoas - o movimento) que aplaudia o vereador Dalcin a cada mexida de bunda na cadeira, mas mal dava ouvidos aos demais, e que fazia questão de vaiar o Andrade, somente o Andrade, era apartidário?
Quero aproveitar a oportunidade para exercitar minha mediunidade. Posso prever que, nesse sábado, para os outros 24 mil barbosenses que não puderam, não conseguiram ou não quiseram acompanhar o decretado “momento histórico” haverá um prato feito preparado pela nossa imprensa decretando que “o povo deixou de lado as convicções políticas e se fez presente”, decretando que “os vereadores foram insensíveis ao gritos de dor da população”. Que se fizeram presentes jovens, crianças, aposentados, professores e metalúrgicos (esses últimos nem preciso dizer com que objetivo seriam citados). Será decretado que toda a parcela consciente da população estava lá e que as únicas pessoas com vínculo político participando da manifestação eram os favoráveis à ampliação (que serão descritos como tolos ou comprados, provavelmente).
Tenho certeza que muita gente vai dizer “eu estava lá e não sou CC nem filiado”, ou “eu ganho FG mas isso não me impede de ter minha opinião”. Parabéns, então (se não for mentira, como também já aconteceu). Parabéns e volte sempre à Câmara. Parabéns e não cometa o erro de avaliar seu candidato em 2012 apenas por uma noite de empulhação e de provocações pessoais, aquelas às escondidas, que só se faz na segurança da "multidão". Parabéns e preste atenção em quem apoiou esse movimento. Preste atenção em quem será sempre vaiado pelo movimento. Acompanhe o processo daqui para frente e tente descobrir a quem o movimento serviu (além do "povo", sim), mas a quem ele serve e servirá daqui por diante debaixo do pretexto de “dar voz à população amordaçada”, como se ninguém estivesse ciente do que a população em geral pensa sobre política (mas sobretudo do que outras categorias pensam sobre política). Não tenho dúvidas do que The Movement atira num alvo para acertar em outro.
Só agora entendo o significado da expressão “em política vale tudo” (e eu pensando que falavam de mortes encomendadas, como acontece às vezes em alguns estados, nunca aqui, obviamente). Mas nunca imaginei que o “vale tudo” seria desse jeito, o que mostra o quanto eu sou aventureiro nesse assunto.
Por falar em vale tudo, assistir àquela mulher (é melhor eu não adjetivá-la) dizendo que não vale a pena aumentar o número de vereadores porque “são só mais dois pra roubar o dinheiro do povo” foi quase mais trash do que o dia em que eu procurei 2 Girls 1 Cup no Google (trash como a RBS, que não perde a chance de reduzir assuntos complexos a uma frase burra e de fácil assimilação e repetição). Não vou falar mais nada, só deixar registrado que me intrigou muito a RBS dedicando espaço da programação para um grupo “apartidário” que coletou mil assinaturas que, por falar nisso, deveriam passar de duas mil, no mínimo, já que o povo estaria tão ferido e revoltado como foi decretado. A RBS poderia poupar seu público de assistir a uma cena tão parca como aquela, no entanto, gravou e levou ao ar a “opinião” mais tosca que eu ouvi até agora ao longo dessa discussão. Essa postura imbecilizante da emissora sempre me faz ter a impressão de que há um objetivo claro por trás dessas “notícias”, mas, como diria o De Assis, esse assunto é galho pra outro macaco. Ou para outra sexta-feira.
Moral da história:
1) as palavras não servem para nada (ou para pouca coisa) uma vez que tenho certeza que pouca gente vai entender realmente o que eu pretendi expressar (isso já foi analisado aqui);
2) a história do mundo se faz por meio de decretos, onde um evento qualquer, testemunhado por uma centena de pessoas é (será) retransmitido para o mundo com o tom e as cores que o transmissor quiser dar, junto com o decreto do que aconteceu, que, via de regra, será reduzido a uma narrativa simplista dos fatos, pra não dizer burra;
3) a campanha eleitoral (ou contra-campanha, ou algo parecido) em Carlos Barbosa começou cedo, antes mesmo da definição das alianças partidárias, tendo como braço direito de um grupo político um movimento que já foi decretado apartidário, e que (já posso prever) estará sempre promovendo manifestações quando o assunto interessar ao povo a algum grupo político específico, o que já está dando mostras de acontecer;
4) em 2012 boa parte do debate eleitoral (senão a principal) irá gravitar em torno da ampliação do Legislativo, mas não pelo viés econômico, que diz que a população foi prejudicada (porque não foi), mas pela lógica maniqueísta que resume tudo a um jogo de mocinho e bandido, em que esses últimos serão os que não ouviram a “vontade do povo”, de modo que, novamente, toda a complexidade do jogo político e seus mecanismos de disputa de poder (que é o que se chama política, afinal) não estarão, como sempre, ao alcance da apreciação do sempre bajulado "povo" que, antes de mais nada, dadas as regras do jogo, é tido pela sua função (nesse instante) dentro do sistema: a de eleitor - cuja vontade é a mesma vontade de outros partidos, mas defendida por estes por motivos bem diferentes, e devidamente afastados do debate; mandando assim pelo ralo todo o conjunto dos trabalhos no Legislativo desenvolvidos ao longo de quatro anos, resumindo tudo a uma única e simples tarefa: lembrar de quem, como foi decretado, não merece mais ser vereador. Uma simplificação muito adequada para conquistar o carinho de um eleitorado distante que, talvez, antes da última quarta-feira, nunca havia colocado os pés na Câmara. E ainda não colocou.

sábado, 27 de agosto de 2011

Nota

[... em breve, novas atualizações... ]

O macaco escrevedor está passando por um breve período de abstinência verbal.

Enquanto isso, lembre-se: se dirigir, não beba; use camisinha e recolha o cocô do seu cachorro.


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Sentidos

Acordei sentindo o cheiro
de tinta da casa ao lado.
Olhos abertos, semiacordado,
espumo o travesseiro
que me espanta com seus gritos
(aquele ganso morto masoquista)
enquanto o ovo do sol 
anuncia o novo dia:
um céu azul sem sonhos.

Do lado de lá das pálpebras
o mundo não é nada.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Vaquinhas alcoolizadas

Algumas das vaquinhas que enfeitaram a última edição do Festiqueijo foram encontradas completamente alcoolizadas e nuas na rótula da Santa Clara. 

Testemunhas afirmaram que não foi a forte ventania que as berrubou (como até então se pensava), mas doses cavalares de moscatel bebido direto da garrafa
 
As vaquinhas foram encaminhadas ao pronto-socorro e agora passam bem.

"Nós prometemos que no ano que vem vamos beber menos. Mas nosso porre tem explicação: só trouxeram vacas, caramba! Passamos todo o Festiqueijo sem a companhia de nenhum touro. Assim não dá, não teve outra saída senão fazer uma comemoração à moda grega com minhas amigas..." desabafou uma das vacas.





quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Crônica curtíssima sobre um tempo perdido


Me
disseram 
que 
eu
deveria
procuar
um
médico.


Que ele iria me ajudar a fazer amigos (influenciar pessoas não). De tanto insistirem... fui. Cheguei no consultório. Ele me disse:

- Filho, escreve um diário.

Perguntei-lhe:

- Você gosta de escrever?

Ele respondeu:

- Prefiro Freud, frango e farofa.

O plano de saúde pagou a conta. Eu saí do consultório. Todos viveram felizes para sempre.





segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Festiqueijo 2011 - eu estive lá

Não adianta. Creio que nada mudará minha opinião sobre essa festa (a menos que mudarem o nome dela para Festiporre ou algo parecido).

Falar de todo o resto é mais do mesmo

Por mais que os organizadores tenham se empenhado em trazer novidades, em acrescentar algo novo à festa, nada mudou em essência. E é uma pena que seja aplicado tanto empenho e tanta dedicação num festival como esse, que pretende ser uma coisa, mas na verdade é outra..
Tudo bem, tenho que admitir: milhares de pessoas vêm a Carlos Barbosa no Festiqueijo. E isso pode ser bom.
Milhares de pessoas desembarcam dos ônibus em frente ao calçadão, entram no Salão Paroquial pela porta da frente e saem pela porta dos fundos, onde o ônibus que as levará de volta está esperando. Algumas passam pelo Varejão e pela Feira da ACI. As poucas pessoas que circulam além do calçadão são aquelas que se perderam e não conseguiram achar a saída da cidade. O que essas pessoas realmente conheceram de Carlos Barbosa? O Salão Paroquial? O Varejo da Tramontina? O nome da Rainha?
Bom... isso deve ser o bastante. E o pessoal da feira da ACI deve ter um incremento nas vendas (do contrário não estariam lá). Isso é bom. Mas o preço que se paga...
O preço que se paga” a que me refiro não é só o valor monetário. É o preço de se criar uma cultura de fantasmas. De mitos. De celebração do nada.
Pessoas vivem me dizendo que o Festiqueijo traz visibilidade à cidade. Pode até ser (assim como a porra do Motocross). Mas a pergunta que eu sempre faço é: quanta? Quanta visibilidade? Números... mas não somente o número do público pagante e de garrafas consumidas. Quero o número de quantas pessoas realmente investiram em Carlos Barbosa por causa do Festiqueijo. Quero saber quanto essas pessoas realmente investiram. Quantos investidores o Motocross e o Festiqueijo nos troxeram? Quais? Quem são? Quanta renda geraram? Quantos empregos? Quais benefícios? Onde? Por quanto tempo? Se não é posível gerar ao menos alguns dados estatísticos sobre isso, também não é possível tratar a festa como uma religião e acreditar cegamente que ela trará benefícios que não podem ser mensurados. Em contra partida, posso assegurar que existem números bem concretos sobre os resultados que um município obtém ao compactuar com uma “cultura de festa e álcool” como temos em Barbosa. Os Bombeiros Voluntários que o digam. Só eles sabem quantos jovens são conduzidos ao hospital semanalmente beirando o coma-alcoólico. Achamos engraçado.

Gostaria de saber o que realmente fica na memória dos visitantes, além da lembrança de um porre homérico e da foto com a vaquinha

Eu fico indignado! Tenho, no Facebook, amigos de Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Porto Alegre, da p*ta que o pariu, enfim. Estes amigos tem muitos outros e (quem conhece o facebook sabe do que estou falando) é possível acompanhar os diálogos e os comentários de muita gente que esteve aqui – mas só vejo fotos de (1) gente bêbada, (2) gente comentando sobre a ressaca fenomenal que está enfrentando, (3) gente falando em voltar no ano que vem para “encher a cara de novo” e (4) surpresa: gente dizendo que não gostou. Não vi ninguém elogiando a gastronomia (eles elogiam o fato de poder comer à vontade). Não vi ninguém elogiando os vinhos (elogia-se o fato de beber à vontade).
Portanto: Dedustação de vinhos no Festiqueijo – mito. Um que outro apreciador de vinhos até poderá haver. Mas estive lá no dia 30 e não vi gente fina degustando vinhos. Vi gente fina alterada pelo álcool, isso sim. Aliás, Carlos Barbosa produz vinho?... Deixa pra lá...
Degustar queijos - mito. Eu gosto de queijos. Fui ao Festiqueijo e não consegui degustar merda nenhuma. Não havia a menor condição. Deslocar-se de um estande a outro era uma verdadeira epopeia.
Gastronomia: bom, se você chama  coxa de galinha, pastel de queijo, pizza e polentinha com queijo de gastronomia, e roda 1200 Km até Carlos Barbosa para sentir o prazer de apreciar essas iguarias... tudo bem.
Saí de lá com a roupa imunda. Perdi a conta de quantas pessoas derramaram bebida na minha camisa – não por o salão estar lotado, mas por já terem perdido os reflexos necessários para andar em linha reta segurando um copo.

Hipocrisia tem limites

Passei três semanas ouvindo aquele discursinho idealista de que nossa festa é um festival gastronômico, uma festa para a família, uma festa para conhecer a cultura local, para encontrar velhos amigos, para fazer novos amigos, etc. Não vi nada disso. Encontrei dois amigos, conheci alguns que poderão ser amigos no futuro (mas isso também dá pra fazer na zona). A única coisa que consegui fazer em paz foi tomar o cafezinho perto da porta da saída. Lá estava tranquilo (leia-se: lá ninguém caia em cima de mim). E o café estava bom.
Não sou puritano. Não tenho nada contra, swing, orgias, bacanais e eventual uso de determinadas substâncias entorpecentes... Mas me revolto com essa aura de glória com que se costuma cobrir esse festival que, na verdade, não passa de uma festa a Baco impulsionada por certo instinto de manada e algum possível oportunismo.
Se mudarem o nome do festival para Festiporre, então tudo bem. Se tiver que tirar os sapatos e as roupas antes de entrar, melhor ainda. Todos pelados bebendo pra valer e fazendo tudo aquilo que a sociedade normalmente não permite num evento barbosense chamado Festiporre. Pelos menos seria algo mais sincero.
Se você leu até aqui talvez goste do texto sobre o Festiqueijo 2010. Ele ainda se aplica a esse de 2011 e aposto minhas unhas dos pés que ele se manterá atual por um bom tempo.



sexta-feira, 29 de julho de 2011

Vereadores: nove ou onze?

O voz do povo é a voz de Deus!
Sistema preferido pelo barbosense:

Sistema ideal para poupar dinheiro

Vamos instaurar uma monarquia absolutista!
"Economizo, logo existo!"


Eu ri...


Embriaguez

São pingos
Gotas de chuva
     Pouca
Molhando a tua
     Roupa


terça-feira, 26 de julho de 2011

Sintomas

Haverá prazeres que superem esta dor de cabeça?
Chego a ficar tonto - de dor e de nojo,
E novamente me vejo perseguindo insônias
(que você não vê)
Enquanto, cego, tento ler as quatro linhas do meu horóscopo
- Um telescópio buscando o passado.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

Aula de história

Sentados
Ouvimos
Sentenças
- Silenciosas reticências... 



 

Crônica policial

Um caco de vidro em lua
Corta o pulso
E um pensamento impuro
Deixa a alma nua
Numa madrugada crua de agosto.


 

Canteiro com flores na Praça Gen. Osório

Não!
Estas poucas flores
Não estão balançando ao sabor do vento.
Estão dançando ao som da cidade,
- Cheias de si
E de maldade.


 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Inércia

Mas meu limite é olhar para esse céu azul,
aquela nuvem branca e coisas assim...
Limito-me a contemplar pernas e saias que passam,
que saem dos seus eixos
infestando faixas de insegurança.
Limito-me a degustar o calor de um verão
numa versão fora de época.
A imitar os outros,
a comemorar, sorrir, chorar...
a contar os dias que passam e
passar os anos calado
(embora pensamentos não se calam). 
 ....................................................
Um pensamento assombra o banco da praça:
Estou vivo!
Enquanto eu, sentado, seguro os meus joelhos.


Idas e vindas

Quisera criar um mundo novo,
vivo, viçoso - porém movediço
e surpreendentemente mudo.
Silencioso como o túnel que nos leva à vida
(aquele refúgio divino e banal)
que em dois tempos nos trai e nos joga ao mar.

Mas qual! Isso não é nada! E o mar...
Lágrimas também são água e sal!
São crianças que nascem sem chorar,
que rolam pelas faces e acabam rendidas ao travesseiro
- aquele outro mundo-
aquele quase lar.





terça-feira, 12 de julho de 2011

O pai a vapor

Seu Antônio chegou ninguém sabe de onde e instalou-se ao pé do pequeno morro, não do lado onde passava a estrada de terra (que descia em direção à Capital), mas do outro.
Construiu a sua casa e constituiu família, trabalhando como agricultor, na base da pequena elevação de terra que o protegia (acreditava ele) do Minuano.
O tempo passou. Antônio assistiu ao nascimento de uma filha e ao desaparecimento da pequena elevação de terra, que fora removida para dar lugar à linha férrea, construída entre a sua casa e a estrada.
Em pouco tempo o lugar paradisíaco que Seu Antônio escolhera para morar havia se transformado num bonito e movimentado vilarejo, que continha até uma plataforma de embarque. Plataforma instalada bem em frente à casa de Antônio que, ao contrário da reação que teríamos hoje, ficou muito feliz por ter sua propriedade tão bem posicionada e valorizada. “Fiz uma boa escolha”, pensava ele toda a quarta-feira, quando o trem passava pelo vilarejo, enquanto olhava a beleza das pessoas e das coisas ao seu redor.
Um pássaro que voasse no sentido leste-oeste, ao olhar para o chão veria, nesta ordem: a estrada de terra que descia a serra em direção à Capital, uma linha férrea que ladeava a estrada até o vilarejo, uma belíssima plataforma de embarque (que, inclusive, contava com casinhas para abrigar os pombos famintos), uma pequena rua cuidadosamente pavimentada e, por último, a casa de Antônio (tudo minuciosamente alinhado, disposto em linhas paralelas). Mas o que realmente encantava o olhar dos pássaros era a plantação de milho de Seu Antônio, situada atrás de sua casa. Encantava, não tanto pela abundância de sementes, mas principalmente pelo formato triangular da propriedade. As terras de Seu Antônio tinham o formato perfeito de um triângulo equilátero. Essa peculiaridade devia-se ao fato de que a propriedade era cuidadosamente (e literalmente) cercada pelos trilhos do trem. Tal triângulo ferroviário era o recurso utilizado na época para “manobrar” a locomotiva a vapor, quer dizer, colocá-la na direção oposta a que estava anteriormente, de modo que pudesse retornar pelo mesmo caminho por onde viera. E funcionava assim: A locomotiva chegava ao vilarejo e parava na plataforma e, enquanto os passageiros subiam e desciam dos carros, o maquinista desconectava-a dos vagões e a fazia seguir em frente até ultrapassar o primeiro vértice. Em seguida, em marcha à ré, seguia pela segunda face do triângulo até o próximo vértice, quando a locomotiva tornava a andar para a frente até encontrar a terceira face do triângulo, onde voltava a conectar-se com os vagões, desta vez na outra extremidade do conjunto de carros, estando, desta forma, pronta para retornar pelo mesmo caminho.
De fato, o trem não “passava” pelo vilarejo. Apenas tocava-o para depois retornar.
Depois de executar tantas tarefas pesadas, o maquinista tinha direito a um merecido descanso antes de seguir viagem. Uma pausa de dez minutos. Descansava invariavelmente encostado à parede da casa de Seu Antônio, ao lado de uma janela com floreira por onde Anita, filha de Antônio, servia ao maquinista saborosas xícaras de café.
Não demorou para o pai de Anita perceber que eles poderiam estar apaixonados e que,  por causa disso, deveria ter uma conversa com o possível pretendente.

- Olá! Disse Seu Antônio.
- Olá.
- Não estaria na hora de o senhor ir até a locomotiva liberar o excesso de vapor?
- Ah, não, Seu Antônio. Nesta semana a Companhia instalou uma válvula automática que libera o vapor excedente automaticamente. É uma joia!

Na semana seguinte o trem tornou a visitar o vilarejo. Todo o procedimento se repetiu e o condutor foi (como sempre) até a janela degustar o café de Anita. Convencido de que deveria dar um jeito naquela questão, Seu Antônio foi novamente ter com o maquinista:

- Olá!
- Olá!
- Não estaria na hora de o senhor ir até a locomotiva e fazer soar o apito para avisar os passageiros que o trem está para partir?
- Ah, não, Seu Antônio. Ontem a Companhia acabou de instalar outro dispositivo automático, uma espécie de relógio que faz com o que apito soe automaticamente no horário exato da partida. Uma joia!

Na semana seguinte, Antônio continuou a observar o maquinista, que desta vez descera da locomotiva antes de executar as manobras costumeiras, e dirigira-se direto à janela onde a bela moça já o aguardava com o café. Seu Antônio já o esperava para a prosa costumeira.

- Olá!
- Olá! Respondeu o maquinista.
- Será que, por causa do saboroso café de minha filha, o senhor não se esqueceu de manobrar a locomotiva, como de costume?
- Ah, não, Seu Antônio. A Companhia acabou de instalar um complexo mecanismo e um conjunto de alavancas nos trilhos que permitem que a locomotiva execute esse trabalho automaticamente.

E os três ficaram observando a grande máquina fumegante que, sem qualquer auxílio humano, soltara-se dos carros, percorrera o triângulo e voltara a conectar-se na outra extremidade do comboio. Depois do espetáculo os homens voltaram a conversar.

- Uma joia! Disse o maquinista. Daqui a alguns minutos ela, sozinha, dará o apito da partida e eu saberei que é hora de ir embora. Se eu não tomar cuidado ela parte sem mim.
- Pelo visto, em breve a Companhia não vai precisar mais de maquinistas.
- Na verdade já não precisa, ela só necessita de alguém para abastecer o reboque com lenha e carvão, acender a fornalha da locomotiva e fazer a limpeza da caldeira no final do dia.
- Vejo que não tenho saída. Então... será que não está na hora de o senhor ir até o meu machado, abastecer a minha caixa de lenha e acender o fogão para o nosso almoço?

Assim o maquinista casou-se com a filha do Seu Antônio. Passou a trabalhar numa pequena fábrica de panelas, operando as máquinas a vapor que impulsionavam as lixadeiras. Logo construiu uma casinha em seu próprio triângulo de terra que, rumando com a propriedade de seu sogro, fazia com que a terra de ambos constituísse um bonito losango.
Foi uma boa escolha”, pensou Antônio, enquanto produzia fumaça com seu cachimbo.

*
*          *

Bem, é chegada a hora de pedir desculpas ao leitor porque até o presente momento o fizemos acreditar que o protagonista desta história fosse Seu Antônio. Mas não. Creiam ou não, nossa personagem principal é a própria locomotiva. E se até agora não lhe demos um nome é porque acreditamos que também ela não passe de mais uma personagem plana, como Seu Antônio, Anita ou o maquinista. Ademais, a singularidade da personagem dispensa o uso de um nome.
O fato é que o tempo foi passando e a locomotiva foi sofrendo modificações. As constantes melhorias e atualizações promovidas pelo Companhia logo possibilitaram que a locomotiva trabalhasse por conta própria. Em pouco tempo ela estava de posse de inteligência e vontade própria. Aprendeu a ouvir e a falar. Deixou de ser um equipamento com preço e proprietário para, através de um longo processo judicial, ganhar a sua liberdade. Deixou de ser escrava para tornar-se sócia da Companhia.
As pessoas gostavam de viajar nela. Os mais íntimos conversavam, trocavam conselhos e confidências, dicas de amor, culinária, calúnias e canções típicas. Ela era o orgulho da comunidade.
Houve festa no dia em que ela recebeu uma importante modificação patrocinada pelo Tigers Club local: um conjunto de pneumáticos e sistema de direção. Daquele dia em diante ela poderia andar em qualquer local. Não estaria mais limitada aos trilhos.
Agora a locomotiva frequentava festas, ia à igreja, reuniões de partidos, jogos de futebol, enfim, tudo o que um cidadão normal poderia fazer. Inclusive acessar a Previdência Social.
Aposentou-se e, de repente, numa manhã em que degustava um novo tipo de carvão mineral de ação prolongada, sentiu-se inundada por uma sensação diferente e, até certo ponto, atormentadora. Percebeu que talvez fosse incapaz de morrer.
Lembrou-se dos funerais de Seu Antônio, Dona Anita, e do seu amigo maquinista. Lembrou-se também de pessoas ilustres que já partiram. Estavam mortos há muitos anos e pensou que talvez devesse levar-lhes flores no cemitério. A locomotiva, materialista que era (e sabedora de sua origem mecânica), não estava bem certa de que a vida continuava do outro lado, apesar de ser uma assídua frequentadora da Igreja.
Ela percebeu, então, que jamais poderia amar alguém a ponto de ter filhos. Costumava assistir prazerosa aos adeus e despedidas de famílias inteiras nas plataformas de embarques, e sabia que, por mais tecnologia que incorporasse, jamais teria o privilégio humano de ter uma família para abraçar, rir e chorar, ou deixar heranças, conforme fosse o caso.
Diante disso, ela própria determinou que sua família seria o próprio povo do vilarejo. E ela não estava de todo enganada. Aquela gente era, de algum modo, uma espécie de família que ela ajudou a construir. Decidiu que aqueles habitantes seriam, a partir daquele dia, seus próprios filhos e filhas.
Pensou em como avisar as pessoas sobre isso e concluiu que a melhor forma de se mostrar (ou de agir) como pai e mãe daquele povo seria colocando-se numa posição em que pudesse exercer liderança (tal qual um pai) e oferecer conforto (como uma mãe). Candidatou-se à prefeitura local.
Depois de uma breve disputa com a oposição (“aquela gente que vem de fora pra mudar nosso jeito de falar” – diziam as pessoas) ficou acordado, por vontade geral da população, que ela (a máquina) teria o direito a candidatar-se até mesmo ao cargo de Bispo, se o desejasse. Candidatou-se e, como o previsto, elegeu-se prefeito municipal. Naquela ocasião mandou construir uma outra locomotiva, parecida com ela mesma, que continuaria a visitar o vilarejo e alegrar os moradores e visitantes, muito embora não fosse permitido que aquela réplica tivesse dispositivos automáticos.
Ainda hoje, passados muitos anos, aquela máquina detém o poder na região, embora não se admita mais locomotivas nos cargos públicos. Na verdade, aquela gente que ela considerou seus filhos cresceu e, hoje, poucos sabem que aquela máquina existiu e ainda existe. Atualmente ela continua a governar a região com mão de ferro (literalmente), escondida no seu galpão, soltando baforadas do seu belo cachimbo. Ela é, agora, uma espécie de poder oculto, que governa não só a coisa pública às escondidas, mas também boa parte das das maiores empresas privadas da região, embora a maioria das pessoas prefira acreditar que são governadas por representantes legitimamente eleitos. Parece que o povo do vilarejo não precisa mais de um grande pai comum e, por isso, a locomotiva passa os seus dias trancada no seu galpão, angustiada e deprimida, dando ordens aos seus correligionários (eleitos ou não) e tendo sonhos suicidas em que o antigo maquinista substitui o carvão de sua fornalha por gelo e neve.
 
Mal sabia Seu Antônio que no futuro o seu vilarejo seria todo cercado por trilhos de trem, que as propriedades seriam todas limitadas por infinitas conexões ferroviárias e que as próprias pessoas passariam a estar ligadas por trilhos invisíveis controlados por aquela engenhoca maravilhosa que manobrava e apitava automaticamente em frente a sua casa. Mal sabia Seu Antônio, na sua inocente boa vontade, que somente os pássaros que sobrevoavam a estação férrea estariam livres daqueles terríveis trilhos.

terça-feira, 5 de julho de 2011

A voz do Sol

Erasmo, o catador de latinhas, costumava deleitar-se olhando as estrelas e adivinhando mundos desconhecidos. Gostava de acreditar que, em algum lugar lá em cima, pessoas como ele também estariam contemplando o céu e adivinhando mundos; e ria quando imaginava que pudesse existir um outro Erasmo, catador de latinhas, morando numa daquelas estrelas e levando uma vida igual a dele, como se o universo fosse um grande lago, onde a parte de baixo fosse o reflexo da parte de cima.
Na verdade, Erasmo só parava de pensar nessas coisas quando sentia a necessidade de pensar em como sobreviver. Numa dessas ocasiões ouviu alguns amigos afirmarem que na universidade as pessoas bebiam muita Coca-Cola, tratando-se, portanto, de um mercado inexplorado. Além disso, ouviu dizer que lá não havia concorrência na catação das latas e que as lixeiras costumavam ser limpas, contendo, no máximo (além das latinhas) papel e embalagens de cigarros vazias. Não precisaria, portanto, sujar as mãos em lixeiras ancestrais que poderiam conter, talvez, até a própria matéria primordial (aquela a que os alquimistas se referiam) usada por Deus para fazer as estrelas.
Não demorou a entrar em ação. Catou seus sacos e seu carrinho com rodas tortas de bicicletas órfãs e desceu a ladeira em direção ao campus (sempre que ouvia alguém pronunciar essa palavra, lembrava do cemitério. Tinha a imprecisa certeza de que, há muitos anos, ouvira alguém chamar o cemitério de campo, ou campus, ou algo assim, santo).
Lembrava-se da sua infância enquanto descia a ladeira suavemente. Pensava nos mortos que já vira entrar no cemitério, transportados em carrinhos semelhantes ao seu. Imaginou-se descendo a ladeira com um carrinho daqueles, carregando um defunto. Depois, vislumbrou-se no caixão, sendo conduzido ladeira abaixo pela estátua nua da praça. Riu.

A universidade, no domingo, era pouco movimentada. Logo que chegou, Erasmo tratou imediatamente de procurar pelas lixeiras de plástico afim de localizar o precioso material. Na verdade havia muitas lixeiras, mais do que no centro da cidade. Mas havia poucas latinhas. Talvez o caminhão do lixo houvesse passado antes dele, na sexta ou no sábado.
Estando longe da sua casa, decidiu ficar por ali, até segunda ou terça-feira. Fez o que sabia fazer: sentou-se num canto de modo a não incomodar ninguém (sobretudo os homens de azul que já lançavam olhares escorregadios) e cobriu-se com uns trapos. Ficou ali, entregue às estrelas que ele tanto conhecia e admirava.
Dormiu e acordou na segunda-feira, já perto da hora do almoço. Retirou de uma de suas sacolas plásticas a refeição previamente preparada por sua irmã, que deveria estar pelas bandas da linha férrea, onde havia fábricas e muitas caixas de papelão. Ambos sabiam que era preciso explorar lugares novos (que seriam, necessariamente, encontrados debaixo deste sol), e que isso poderia demorar um tempo. De qualquer forma, sabia que ela conseguia mais dinheiro prestando serviços aos operários na saída das fábricas do que catando papel. Mas isso não o incomodava. Havia comida para mais de um dia (se fosse preciso) e água nunca lhe faltava. Ele a buscava numa torneira qualquer. Erasmo sabia que onde havia um gramado bem cuidado havia uma torneira. Como no cemitério. Por precaução sempre trazia uma garrafa presa na lateral do carrinho, a qual aproveitava para abastecer sempre que encontrava uma torneira à deriva.
No campus, tinha medo de se aproximar do lugar onde havia mais pessoas. Ele sabia que não era bem-vindo nesses espaços com gente diferente comendo em mesinhas redondas colocadas em grandes espaços coletivos. Ao mesmo tempo tinha a impressão de que essa gente diferente também tinha medo dele. Mesmo assim, a universidade passou a fazer parte do roteiro de Erasmo, que a visitava de tempos em tempos, mais pela facilidade em descer a ladeira do que pela quantidade de alumínio coletado.

De fato já havia percebido que ali, diferente do que ouvira falar, as pessoas não consumiam tanta Coca-Cola. Não mais do que em qualquer outro lugar e até menos do que na estação rodoviária. Entretanto, uma coisa era certa: não havia concorrência. Erasmo, até agora, era o único catador de latinhas a se aproximar do campus, se bem que ele próprio reconhecia que jamais se aproximara dos locais onde circulavam os homens de azul. Sabia, ou melhor, sentia que aqueles homens não permitiriam que ele se aproximasse demais. Para não perder a viagem, limitava-se a coletar as escassas latinhas depositadas nas lixeiras do estacionamento. Sempre nos horários de menos movimentação. Nunca aos domingos. O caminhão não deixava nada para os domingos.

***

Certo dia, posterior à noite em que trocaram a água de sua garrafa por cachaça, Erasmo amanheceu cheio de coragem e enveredou em direção à praça de alimentação do campus. Sem medo e sem documentos. Quando percebeu que um dos seguranças corria em sua direção, abandonou o carrinho e, munido apenas de uma sacola, pôs-se a correr também. Sabia que não chegaria até as lixeiras e, por isso mesmo, já antecipava o momento em que  o homem de azul chegaria para xingar a sua mãe de puta e arrastá-lo para fora dali. Mas seguiu, corajoso.
Conforme o previsto, sentiu o homem chegar e segurar seu braço fazendo-o parar. Mas não ouviu o xingamento, pois quando o segurança abriu a boca, ao invés de impropérios e saliva, saíram apenas raios de luz. Muita luz, como o farol de uma motocicleta que estava prestes a atropelá-lo. Olhou ao redor e, iniciado o tumulto, percebeu que as demais pessoas também emitiam luz pela boca no lugar de palavras. E as luzes saiam e iluminavam lixeiras, paredes, chão, vitrines, e os rostos pálidos das outras pessoas, projetando sombras e imagens. Imagens às vezes sujas e feias, às vezes complacentes. Imagens indignadas e indignantes nas quais, muitas vezes, ele se reconhecia.
As pessoas não pronunciavam palavras -- projetavam imagens.
No momento em que Erasmo não pôde mais suportar o medo e gritou, todas as luzes de todas as bocas se apagaram. Ouviu, então, o seu próprio coração e não pôde deixar de sentir um cheiro que o fazia lembrar-se de um livrinho de alquimia que encontrara, há anos, na lixeira de perto da igreja. Cheiro de livro antigo que o padre velho recolhera do inocente coroinha e atirara ao lixo com repulsa. Era o cheiro da roupa do homem de azul que o prendia pelo braço.
Antes de ser também ele jogado para fora dali, Erasmo pensou em justificar-se (afinal, não queria incomodar ninguém) dizendo que precisava de latas de alumínio para vender na cooperativa de reciclagem. Achou também que deveria pronunciar a palavra “desenvolvimentossustentável” (cujo significado ele desconhecia, mas que fascinava as pessoas instruídas). Com um esforço gaguejante, abriu a boca que tremia de medo e pronunciou o primeiro fonema. O segundo. O terceiro. Pronunciou a primeira palavra. A segunda. Parou.
Ninguém parecia compreender o que ele queria dizer. A multidão se entreolhou e, pouco a pouco, pequenos fachos de luz voltaram a sair das bocas das pessoas. O coletor de latinhas fechou os olhos antevendo o conforto de um desmaio, mas não houve escuridão. Mesmo de olhos fechados Erasmo conseguia ver os pequenos raios luminosos que saiam das bocas.
Assim, de olhos fechados, ele ficou observando as imagens que as pessoas diziam dele. Uma luz mostrava que a pessoa que a emitiu estava com medo. Outra mostrava angústia. As luzes das pessoas que estavam mais distantes mostravam curiosidade, vontade de se aproximar. As mais próximas mostravam que as pessoas queriam se afastar. Luzes fortes e fracas, coloridas e pálidas. Logo o coro de luzes voltou a iluminar os olhos fechados de Erasmo com uma insuportável sinfonia silenciosa de cores e imagens. O único ruído audível era o do seu próprio coração.
Com um golpe violento o mendigo desvencilhou-se do homem (que já não o prendia) e correu com toda a força que suas velhas pernas permitiam.
Passou pelo carrinho de rodas de bicicleta, atravessou o estacionamento trombando em arvorezinhas e pedestres incautos, subiu escadas, pulou muretas, derrubou bancas de flores, espantou folhas de jornais que esvoaçaram em alvoroço junto aos pombos.
Correu o quanto pode. Subiu a ladeira. Atravessou ruas e avenidas, praças e parques, de modo que só parou de correr depois de muito tempo, quando já escurecia. Parou ofegante, em frente à estátua de uma mulher nua que derramava água de um vaso. “Uma água que sem fim”. Olhou para a estátua (com medo de que ela também o enxotasse dali com possíveis luzes cor-de-mármore) e ficou esperando. Levou algum tempo para perceber que, além do próprio coração, podia ouvir também o burburinho da água que caía.
Logo descobriu que aquela estátua era a única coisa no mundo com a quem ele podia conversar. Ela contava-lhe histórias de tempos idos, não com a voz de luz, mas com voz de gente, com palavras. Ele narrava as suas aventuras e contava confidências ao pé do ouvido. Com o tempo, aprendeu que conseguia compreender as palavras de qualquer coisa que emitisse luz, embora só as palavras daquela estátua atraiam-no. Apaixonaram-se como se apaixonam as pessoas de carne. Junto dela ele aprendeu a amar e a cantar.
Assim Erasmo terminou seus dias, tendo aquela estátua como companheira. Pessoas de muito longe vinham à praça para assistir aquele espetáculo que era Erasmo declamando poemas e cantando canções antigas, trepado num caixote de feira que servia de palanque. Quem gostava costumava retribuir com trocados, sorrisos e exclamações luminosas que saiam de suas bocas e se misturavam com a alegria dos anúncios eletrônicos e as incertezas dos semáforos. Mas, para além dos edifícios, Erasmo sabia que as próprias estrelas escutavam-no admiradas. Era o que lhe afirmavam aquelas pequenas luzes que brilhavam no céu.



quarta-feira, 29 de junho de 2011

Insinuações símias sobre o Universo e máquinas de escrever

Ou: Onde tudo começa e tudo acaba
 
                                                             E se Deus for um macaco num laboratório alienígena, brincando com as teclas de uma máquina de escrever?

 
Times New Roman é, sem dúvida, uma das fontes mais feias que existe. Não sou só eu que penso assim. É quase uma unanimidade. Entretanto, ela é ao mesmo tempo uma das mais utilizadas, seja em trabalhos científicos, diários eletrônicos, e-mails, jornais, livros, ofícios e o que mais você conseguir imaginar. É bem possível que essa preferência inconsciente pelo mais feio deve-se simplesmente à preguiça de clicar lá em cima e trocar para Arial. Ou talvez não.
O pretexto corrente de que a fonte “times” é uma exigência da ABNT não vale. A norma também admite o uso da outra. Ao menos meus singelos trabalhos acadêmicos nunca tiveram problemas com o uso de Arial.
Bem, depois de resolvido esse importantíssimo problema da fonte (porque beleza ainda é fundamental), o próximo passo consiste em escolher um dos dez dedos e empurrá-lo em direção a uma das teclas. Na verdade trata-se de oito dedos, se admitirmos que aos polegares corresponde a barra de espaços, e se admitirmos, ainda, que não é muito coerente iniciar um texto com um espaço (apesar de tradicionalmente existir alguns centímetros vazios a cada novo parágrafo). Mas esqueçamos isso. Deixemos que a magia do Office nos ajude com os parágrafos.
Assim sendo, tendo resolvido a questão da primeira letra, podemos deduzir que o segundo passo em direção a um texto consiste necessariamente em inserir a segunda letra. Mas esta, ao contrário da primeira, não pode ser escolhida ao acaso. Existem normas (convencionadas e não convencionadas) em relação a isso e elas devem ser respeitadas (sob pena de a comunicação não ocorrer).
Esta sucessão de caracteres inseridos deverá, necessariamente, formar uma palavra, seja ela conhecida do leitor ou não. A sucessão de palavras eventualmente poderá compor um texto que, ainda eventualmente, poderá ter alguma utilidade para alguém (o bom da modernidade é que árvores são poupadas, eu acho). Sobre isso, cabe destacar que, normalmente, a qualidade de um texto é inversamente proporcional a sua utilidade (se estivermos falando de Literatura), mas isto não é uma regra. Há textos inúteis e ruins, como este.
A partir daqui existem nada menos do que trocentas e tantas teorias que pretendem explicar as infinitas partes disso tudo que eu estou falando. Há inclusive teorias que tentam demonstrar como leitores insanos procuram por textos igualmente insanos que atendam as suas expectativas, bem como as formas que essas pessoas se relacionam (ou não) fora do universo dos textos escritos, o que pode ser ainda mais sinistro (ou não, dependendo do ponto de vista). Isso sem falar nas teorias que demonstram como muitas pessoas procuram pela leitura de textos que lhes desagradem. Hay de todos os tipos, disse uma personagem de O tempo e o vento.

***

O Teorema do Macaco Infinito (mudando de sacola para eco-bag) é uma brincadeira matemática que pretende demonstrar o quanto o infinito pode ser grande e apavorante. Assim, imagine um macaco com um computador a sua frente e com a liberdade para pressionar as teclas que quiser. Surgirão diversas letras aleatórias e, eventualmente, duas delas poderão formar uma sílaba e, com sorte, uma palavra. Se imaginarmos dez macacos com dez teclados podemos concluir que aumentam as probabilidades de surgirem outras sílabas e outras palavras.
Agora, se imaginarmos um número infinito de macacos pressionando aleatoriamente as teclas de um número infinito de teclados, e imaginarmos, ainda, que eles possam passar nada menos que toda a eternidade fazendo isso (esses chimpanzés são fodas), podemos concluir que existe, estatisticamente falando, a possibilidade de que um deles escreva, sem querer, um soneto de Camões. Ou uma página do Zero-Hora. Ou este texto. Os mais fervorosos garantem que pode surgir até a obra completa de Shakespeare. O tempo é tudo (não a matemática)...

(Me pergunto se os macacos prefeririam Times ou Arial...)

(Aliás, acho que todo o mundo se faz esse tipo de pergunta. Não é possível que as pessoas estejam sempre se perguntando se os sapatos combinam com a blusa ou se devem abastecer com álcool ou gasolina. Seria um desperdício (ou sete bilhões de desperdícios...), enfim...)

Na verdade, talvez não estejamos muito longe dessa ideia boba dos macacos infinitos. Macacos que juntam letras e constroem realidades. Há alguém que se considere muito mais do que isso? (Quero conhecê-lo, porque ela deve ser uma pessoa incrível).
Não quero dizer que somos tão inúteis a ponto de atravessar o infinito esperando pelo acaso de “trupicar” em alguma boa ideia, mas é quase isso. Não podemos negar que estamos conectados ao passado de um processo que se não é infinito é muito longo, e que tudo o que vivemos hoje não passa do resultado de uma boa “trupicada” ancestral. E não importa quando começou, importa que eu não estava lá. Nem os macacos ou o MS-Word. Não havia e não há protagonistas. Há somente pessoas ao acaso, dando Ctrl+C e Ctrl+V em ideias boas ou ruins, coerentes ou absurdas; volta e meia esbarrando em algo novo (ou ao menos desconhecido) misturando coisas que pode resultar em algo produtivo ou catastrófico, como o texto de um macaco infinito.
E as considerações finais? Como concluir uma página de um texto que ninguém sabe onde começou? Simples: não se conclui. Sobre esse aspecto a televisão e os seriados americanos já nos brindaram com sua criação máxima: o to be continued.
Eu, para exercer o cilício da continuação, gosto de utilizar Arial, espaçamento 1,5. Começo digitando a primeira palavra e concluo que as pessoas que inventaram o backspace inventaram a roda e não o sabem, tal qual macacos shakespearianos. Se isso presta? Nem Deus sabe! Mas em meio a todas essas letras me satisfaço com a beleza que consigo enxergar nelas e me comprazo em imaginar que ela pode ser diferente daquela que os macocos veem. - E, de quebra, me dou o direito da culpa.