quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O maior porta-retratos do mundo

Lembro-me vagamente de histórias de índios que tinham medo de serem fotografados. Acreditavam que suas almas ficariam aprisionadas para sempre no interior da câmara ou no papel fotográfico. Eu tinha mais ou menos seis ou sete anos quando meu avô contava essas histórias.

É realmente excitante pensar na máquina fotográfica como sendo uma arapuca do diabo para pegar almas descuidadas. Na taba, a explicação mítica para a química incompreensível da fotografia talvez alimentasse longas noites de histórias contadas ao redor do fogo. Na taba e, também, aqui. Isso poderia explicar por que o céu parece ter cada vez menos estrelas: porque as almas, ao invés de irem para lá, ficam aprisionadas por aqui, em books, e-books, facebooks e outdoors. Enfim, enquanto criança, minha tendência era acreditar mais na explicação mítica da fotografia do que nas emulsões e cristais de prata da ciência. De qualquer forma, almas cativas sempre serão mais interessantes do que cristais de prata.

Mais tarde ouvi falar de um tal de Narciso (não me pergunte o que isso tem com fotografia, não faço ideia...), aquele que teria se apaixonado pela sua porópria imagem refletida na água e danou-se por causa disso. Então a magia da câmara fotográfica (ou câmera, como preferem os moderninhos) passou a oscilar entre uma armadilha demoníaca e uma bênção divina. Sim, porque se Narciso fosse barbosense e tivesse uma Sony, não teria se afogado. Talvez.

Nosso admirável mundo nos trouxe muito mais do que fotografia. Deu-nos câmeras digitais, Internet, televisão HD, etc. Poderíamos dizer que estamos, mais do que nunca,  na era da imagem. Podemos nos apaixonar por nossa própria imagem e compartilhar esse sentimento instantaneamente com uma enorme quantidade de amigos. Sem remorsos. E quando nossa imagem quase perfeita não nos for mais satisfatória, podemos nos apaixonar por uma espécie de reflexo de nós mesmos produzido em alta definição pelo discurso televisivo. É só escolher um ator, um personagem da novela, um herói do BBB, enfim, uma persona enlatada que talvez  seja parecida conosco; em que possamos amar nela aquilo que ela contém de nós.

O que estava demorando nesse texto:

Não é preciso dizer que os municípios da região serrana do Rio Grande do Sul não fazem parte do Brasil. Todos sabemos que estamos anos-luz a frente do restante do país. Tudo por aqui é mais avançado, evoluído. Todos os nossos problemas já foram resolvidos há mais de um século. Somos mais do que primeiro mundo. Somos O Mundo. Repito: Se Narciso fosse barbosense, não teria se afogado.

Por aqui nós já compreendemos tudo sobre tudo. Já aprendemos tudo sobre imagem, discurso televisivo, narcisismo, psicanálise, panelas de pressão, etc. Já superamos a “crise da família” (aliás, nunca tivemos tal crise) e, por isso mesmo, a TV saiu da sala de estar para superar a si mesma, redefinindo sua geografia suas funções. Basta chegar em Carlos Barbosa e reparar no enorme painel eletrônico instalado na entrada da cidade*. Nesse painel, entre um comercial de panelas e um de talheres, aparece a imagem de colaboradores operários da nossa Grande Fábrica de Panelas. Reza a lenda que todos os funcionários foram fotografados (querendo ou não) e que todos sorriram (querendo ou não); mas ainda não tive tempo para averiguar. Pode ser mentira.

Que isso sirva de exemplo para as outras empresas e os outros municípios. Nossa comunidade é a nossa sala de estar. Somos uma enorme família de milhares de pessoas e o papai Tramontina nos presenteou com um enorme Espelho de Narciso, protegido por grades e por leis estaduais (do contrário não poderia estar ali) e, principalmente, protegido por nós. Ninguém vai se afogar olhando para ele. Ninguém terá a sua alma aprisionada como acreditavam aqueles índios burros. Todos precisamos dele para saber quem somos e quanto valemos. Precisamos dele para nos amarmos e sermos amados.


* No meu fabuloso texto sobre o trevo de acesso a Carlos Barbosa esqueci de mencionar que ele contaria com programação local de TV a cabo.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Conto escrito num dia de chuva

Naquele dia o céu amanheceu mais nublado do que de costume. Não houve cantoria de pássaros nem de crianças brincando de roda na creche ao lado. De sua cama podia ver apenas que já era dia e que o relógio havia parado antes do horário de despertar. Malditos relógios! Ele não teve dúvida: estava atrasado.

Naquela manhã não houve café. Não houve jornal nem cigarro. Ouviu-se apenas o roque-roque de uma escova de dentes fazendo o seu trabalho de autômato e o farfalhar de calças subindo pelas pernas. Por Deus, onde estará o guarda-chuva? Teve que sair sem ele.

Na estrada o cigarro teve que disputar a atenção do seu mestre com o volante do carro. A fumaça desenhava formas familiares. O céu estava escuro. Vai chover logo.
Naquela manhã não houve trânsito. Não era domingo, nem feriado. Não fazia sentido. Pensou que chegaria atrasado mas, talvez, poderia estar enganado. Calcular o tempo que demora para ir de um lugar a outro não era o seu forte. Sempre preocupava-se em acrescentar minutos a mais para a eventualidade de um pneu furado ou de os semáforos estarem, a maioria, fechados. Mas (como era de se esperar) não houve pneus furados. Só um sinal estava vermelho.

Naquela manhã parou para comprar um guarda-chuva. Mas como são feios os guarda-chuvas! E inúteis e desprezíveis! Sempre se perdem e se intrometem em frases falseando o seu sentido.  Iria precisar dele para proteger a cabeça na volta.

De volta à estrada, subiu mais uma ladeira e estacionou perto de uma praça. Saiu do carro e apertou um botão. Gostava de afastar-se do carro enquanto os vidros subiam. Aquilo fazia as coisas parecerem um filme americano, daqueles em que tudo é perfeito e o protagonista é sempre um herói. E nosso herói estava numa pequena e perfeita cidade onde os raros e perfeitos habitantes que passavam resmungavam bons-dias olhando para os pés.

Andou uns vinte metros e sentou-se num banco à sombra de um plátano. Este último continha uma inscrição: "Paulo e Patrícia", dentro de uma tentativa de coração feito a canivete. O banco também portava suas artes, porém vulgares, escritas a líquido corretivo: a caricatura de um pênis, palavrões e ameaças a honra da mãe de quem, por ventura, sentasse ali. Havia tempo para mais um cigarro. As nuvens permitiam.

Naquele dia apareceu uma mulher com uma jovem. Treze anos, talvez. Não olhou para a menina.

-- Deixei a sacristia aberta, disse a mulher. Quando terminarem, você sai pela frente e ela pelos fundos.
Ela, de fato, saiu pela porta de trás, talvez mais cedo do que ela própria esperava. Ele permaneceu em silêncio. Olhou à sua volta. Uma pia simplória. Um armário com batinas. Uma janelinha que mostrava um céu que não poderia ficar mais negro. Olhou pela porta que dava acesso ao interior da igreja. No tabernáculo, Deus dormia. Principiava a chuva, providencialmente torrencial.

Diziam que ele era pai, mas padre ele sabia que não era.  Mesmo assim, andou até o armário e vestiu a batina. Em frente ao espelho ajustou a posição da estola. Gostou da sua imagem refletida. "Imagem e perfeição", disse para si mesmo. Seria sua melhor história, se alguém acreditasse nela.

Naquele dia andou pelo corredor central da nave cantarolando Adeste Fidelis. Lá fora, porém, o céu despejava rajadas de fogo e água. À porta da igreja a cidade não passava de um grande cemitério lamacento.

-- Estão todos mortos. 

Ao longe andava a menina com o guarda-chuva do homem e uma criança nos braços. Ele a reconheceu. 

-- Estão todos mortos.

Havia, agora, uma cidade inteira a sepultar. A chuva fazia o seu trabalho.