domingo, 29 de maio de 2011

Breve reflexão semi-surrealista a respeito da matéria

O dia e a noite, a cada minuto, tendem a ser mais parecidos. A se tocarem. Misturam-se como um gato se mistura ao sofá onde dorme tranquilo.

Neste dia e nesta noite, este gato e este sofá são os mesmos. Somente suas posturas mudam. O gato se espreguiça: o sofá relaxa. O gato salta ao chão em busca de sua tigela de “coisinhas sabor peixe”: o sofá respira. O gato retorna ao sofá e se recolhe em uma bola de vida: o sofá agradece e o abraça carinhosamente.

Pessoas entram e saem do dia e da noite cada vez mais “mesmas”. Diluem-se, a cada dia, as diferenças entre sono e vigília. Dormimos tensos e sonhamos acordados. O sol e a lua nos acolhem e riem gostoso.

Nossas camas e nossos automóveis são idênticos, e não por acaso. E nossos animais de estimação nos lançam olhares atônitos; olhares que antes pertenciam somente aos peixinhos dourados, habitantes daqueles navios de plástico que já nascem naufragados.

Dia e noite, idênticos, transformam-se em um único mar cinza, cujo destino é abrigar nossos corpos, nossos escafandros afundados. Gato e sofá transgridem a rotina por mim imposta (a de caçar ratos e descansar pernas) para ganharem vida própria e servirem de espelho da alma que resta. Um espelho sem controle remoto. Sem digitalismos e de infinitos megapixels. Um espelho que mostra o quanto a matéria morta ao meu redor me acolhe e me fabrica, como o sofá fabrica o gato que, espreguiçando, lhe fere o braço com as unhas. De dia ou de noite.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Uma pequena pausa (e uma grande dúvida)

Obs.: Quando me sentei em frente ao computador, a ideia era discorrer sobre como 200 metros de asfalto sobre um punhado de ruas já calçadas poderiam trazer mais qualidade de vida (?) para o barbosense. Porém minha musa inspiradora me disse que não vale a pena discutir com os homens-carro.

Por isso, fica valendo o texto a seguir, que é mais pertinente e não agride a inteligência do leitor (aquele que tem cabeça e pés ao invés de faróis e rodas).



UMA PEQUENA PAUSA (E UMA GRANDE DÚVIDA)

Os vegetarianos também precisam de carne, dizem...


Entre contos, opiniões e histórias, decidi fazer uma pequena pausa para o que poderíamos chamar de uma breve reflexão sobre o sentido de escrever, mesmo sabendo que isso trará mais dúvidas do que respostas.

Tenho observado que tem sido comum "escritores" como eu transformarem seus espaços paranoico-pseudo-democráticos-cibernéticos (ou blogues) em uma espécie de analista gratuito onde, eventualmente, destilamos nossas angústias e frustrações para a eventual e prazerosa leitura de outros paranoicos cibernéticos - leitores que, por coincidência, compartilham da nossa visão de mundo (ou parte dela), visão esta que não é exagerado chamar de ideologia.

Sendo assim, a pergunta que dirijo a mim mesmo (e a quem sentir-se apto a responder) é a seguinte: Que efeitos a minha escrita (e a sua, e a de qualquer blogueiro) produz em meus (seus) leitores? Não no leitor amigo, mas no estranho? Leitores desconhecidos e conhecidos desafetos?

E, por extensão: Por que escrever?

De que adianta falarmos das boçalidades de um Bolsonaro, dos anacronismos de um Casamento Real, dos crimes internacionais cometidos pelos Estados Unidos (ou não, vá lá, há liberdade para isso também...) se estamos falando para nós mesmos e para nossos pares? Seria essa prática de escrita nada mais do que uma espécie de masturbação coletiva? Até que ponto um pequeno texto como este, perdido nessa vassalagem que é a Internet, tem um poder maior do que o de agrupar formigas ou o de atrair os aplausos dos meus seguidores e as vaias dos detratores?

Por outro lado, poderíamos estar escrevendo sobre orquídeas. Automóveis. Decoração. Escrevendo algo útil, como já me disseram. São dois extremos que, se não se tocam, se observam de longe, pensando um no outro e reconhecendo, com vergonha, algum parentesco.

Entretanto, enquanto me faço essas perguntas, conscientizo-me de minha atitude contraditória (mas que me desobriga a falar de orquídeas) e assumo que minha personalidade se recusa a cruzar os braços e crer na fatalidade das coisas. E, além do mais, (e embora não pretendo salvar o mundo) prefiro acreditar que, de algum modo, esse trabalho de formiga escrevente vale mais a pena do que o de crítico de decoração. Prefiro acreditar que talvez ainda exista algum indeciso por aí esperando só um empurrãozinho do acaso para topar com algum texto interessante que o faça desligar a TV e pegar o controle remoto do seu pensamento, nem que seja por quinze minutos, numa ida qualquer ao banheiro (e nem que seja, ainda, para pensar que é livre para apensar). E se for através de textos melhores, melhor.

Enquanto isso, sigo curtindo a minha liberdade de pensar que estou fazendo a minha parte (ou ao menos parte dela). Continuarão acontecendo bizarrices (locais, regionais ou universais) que me deixarão com vontade de botar o meu lado satírico para trabalhar, porque, afinal, também faço parte desta tragédia. E enquanto os deuses não esclarecem minhas dúvidas, posso permanecer nessa brincadeira de acreditar porque, afinal, o mais legal desse jogo é acreditar que a realidade também é uma ficção. Ficção não somente de autoria da indústria do notícia, indústria da verdade (porque a verdade é, sim, um produto para se vender). Nesse jogo, prefiro crer que nós, escrevedores de blogues incompreendidos, também somos ficcionistas. Ao menos nos esforçamos para tal e, enquanto esse analista cibernético for relativamente acessível, tanto melhor para nosso frágeis egos.

Quanto às respostas, por enquanto me viro com esta (é provisória e me ocorreu agora): Escrevemos porque temos fé. Fé em nossa frágil ficção, porque esta nos constrói.

Agora, se me permitirem, retiro-me para observar a paisagem. Vou apreciar os pneus rolarem silenciosos pela mais nova rua asfaltada da cidade. E os problemas de verdade, que fiquem onde estão: escondidos nas entrelinhas de outros textos.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Storie e racconti II - Gente que faz

A nossa região é conhecida em todo universo pela absurda aptidão da nossa gente para o trabalho. E também pelo frio. E pelo vinho, em alguns municípios. Quando pensei em gente trabalhadora, frio e vinho, lembrei-me logo de uma história contada, há vários anos, por um então professor do Senai. Ele não é exatamente um "nono", mas é uma figura muito inteligente e simpática. E tem estrada. Só vou dizer que esse cara, na sua juventude, chegou a trabalhar no setor de engenharia da Tramontina, no tempo do epa, quando, para fazer uma simples cópia de um desenho (o que custava uma fortuna), necessitava-se de mão de obra altamente especializada, produtos químicos e equipamentos alienígenas.


EU TRABALHEI NA ENGENHARIA DA TRAMONTINA
(História contada há anos, por um então professor do Senai)

Mas isso foi há muito tempo. Nem vou dizer quando para não ficar feio. Mas digo que, naquele tempo, projetar e colocar no papel um simples desenho de uma lâmina de uma faquinha qualquer, não era brincadeira. Como diz a gurizada de hoje: era foda. O computador só veio alguns anos depois e, mesmo assim, sua aplicação era bem limitada.

Bem, mas vamos aos fatos. Trabalhávamos numa sala, em três pessoas. Lá havia aquelas mesas de desenho enormes, magníficas, cada uma com uma tonelada de equipamentos para o desenhista utilizar, papel, tudo. Era quase que uma sala ultra-secreta. Quase ninguém entrava lá. Para falar a verdade, se você não fosse atento, apanhava para achar o caminho. Lá também havia uma prateleira com diversos recipientes que continham produtos químicos utilizados para, entre outras coisas, copiar os desenhos. Era um processo interessante, qualquer dia eu falo sobre isso...

Aquilo tudo era no tempo da máquina de escrever e do ponto com cartão perfurado, mas, apesar de tudo, aquela época tinha as suas elegâncias. Havia, por exemplo, a sempre necessária garrafa térmica com café. Desde lá até os dias de hoje, o único setor de qualquer empresa que não é movido a café é, sem dúvida, o chão de fábrica. Fora esse, era capaz de ter uma garrafa de café até na salinha de ferramentas do jardineiro.


E, apesar de estarmos falando em tempos do epa, também havia modernidades. Sabe aquela mania de organização que faz o pessoal sair colocando etiqueta por todo o lado? Naquela época já tinha disso. Acima do bebedor havia uma identificação bem visível: BEBEDOR. Nos ramais de telefone de toda a empresa tinha que ter a identificação: TELEFONE. Será que tinham medo que alguém não soubesse o que era um telefone? Seria cômico se não fosse trágico. Parecia que haviam descoberto o alfabeto. CARTÃO PONTO, VASSOURA, LIXO, GAVETA, PRATELEIRA, RELÓGIO... Só faltava identificarem as portas e as janelas...


Na nossa salinha não era diferente. Mas havia um porém: algumas coisas precisavam realmente de identificação. Era o caso dos químicos na prateleira. Cada recipiente estava identificado com a descrição do conteúdo, e os mais perigosos traziam a temerária e universal caveirinha, mostrando tratar-se de algo venenoso. Lembram daquela aula do Seu Madruga na escola do Professor Girafales? “Quando virem esse símbolo, não bebam!”


Naquele momento da empresa, o nosso principal desafio, enquanto engenharia, era conseguir não passar frio no inverno. Nos reunimos, fizemos um brainstorming e descobrimos que a melhor alternativa seria adicionar graspa ao café que consumíamos. A partir de então o problema passou a ser o seguinte: como fazer entrar e permanecer na empresa, na nossa salinha, uma garrafa de graspa, sem que ninguém percebesse? De vez em quando rolava uma espécie de “auditoria”, por isso, simplesmente esconder a garrafa em qualquer lugar era inviável. Alguém fatalmente a encontraria.


A solução foi encontrada por um colega nosso que, numa manhã de domingo, teve uma visão inspirada. Ele pensou em esconder a graspa na prateleira dos químicos, num recipiente idêntico. Na segunda-feira ele providenciou um recipiente novo, a caveirinha e a devida identificação. A partir de então passou a figurar mais um químico na nossa sala. A identificação dizia: CUIDADO – ÁCIDO GRASPÓLICO.


Assim, consumimos em segredo, durante vários invernos, o nosso divino café com graspa.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Storie e racconti

Storie e raconti são, na verdade, histórias de nonos. Velhinhos anônimos (de fato ou por conveniência) que, nessa série, serão tratadas como mera fonte de causos e assuntos para o infeliz exercício da narrativa escrita. Por isso, desde já assumo que estou, sim, cometendo o pecado de reduzir os relatos dessas preciosas fontes históricas (que seriam os nonos) a tentativas, talvez infrutíferas (porém prazerosas), de literatura. Entretanto, sugiro aos que, por ventura, se incomodarem com tal sacrilégio, que, por hora, denunciem-me ao Bispo. Ele saberá o que fazer. Além do mais, sugiro, ainda, que os descontentes busquem por si mesmos seus nonos e divirtam-se. As colônias e asilos estão abarrotados de velhinhos ansiosos por contar-lhes suas aventuras. E certamente é mais agradável ouvi-las dos próprios nonos do que ler esses meus textos, porque um texto é sempre um texto: é pensado, e, por isso mesmo, falseado. Falseado, talvez, até o extremo de pôr em perigo nossa história, nossa mitologia e nossos heróis. Mas não tão falseado que não deixe restar alguma verdade.

Os nonos nos contam histórias que, infelizmente, desaparecem junto com a neblina das segundas-feiras de manhã. As histórias que sobrevivem e ganham seu trono de papel são, invariavelmente, diferentes destas que irei registrar. Aquelas são padronizadas e mal conseguem ocultar seus objetivos moralizantes e condicionamentos ideológicos. Estas são confusas e obscuras, beirando, às vezes, a obscenidade. Os nonos que as contam deixam transparecer aspectos que o ouvinte desatento desconsideraria ou sequer perceberia: gestos, trejeitos e pontos finais cravados com o roncar de uma bomba de chimarrão. E longos silêncios que, quando interrompidos, não deixam de estampar a frustração nos semblantes de seus narradores. Narradores de silêncios. De causos que não foram recordados ou inventados para serem contados ao netinho ou à plateia em delírio, mas que vieram à tona sem motivo aparente, no fogo do acaso, saídos do fundo de um baú que já não se lembra bem das datas, mas que reconhece claramente os fantasmas desenhados pela fumaça de um palheiro. Histórias do nada, que não deveriam ter sido contadas.

O FIM DE SEMANA, O CHURRASCO E O VINHO 
(Livre adaptação de história contada por D. N. P.)

Antigamente não se fazia churrasco assim, como se faz hoje. Me lembro que tínhamos que meter as carnes em espetos feitos de pau (às vezes de bambu) e enfiá-los no chão, em roda de um fogo feito de lenha num buraco não muito fundo, ou numa churrasqueira improvisada com tijolos empilhados. Tínhamos que escolher as varas de acordo: não podia ser muito seca, nem muito verde. Nem muito grossa, nem muito fina. Depois, era descascar a facão para ela ficar mais ou menos reta e poder receber o pedaço de carne. Eu era bem pequeno, mas lembro do avô fazendo esses espetos de pau.

A carne não era furada na hora, com o espeto; ela já tinha que vir furada. A turma que matava o animal já cortava a carne de acordo e já fazia os furos mais ou menos certos pra poder meter os espetos de pau. Lembro que a carne era boa. Era preciso bem mais tempo para preparar um churrasco, que só saía se fosse sol. Os parentes, volta e meia se reuniam para fazer o churrasco.

A gente não era rica, mas não era pobre. Não precisava de esperar um casamento pra fazer churrasco. Isso é bobagem. O pai sempre tinha, no chiqueiro, um porquinho para cada filho, e a gente engordava. Também tinha os novilhos: se não servia pra canga, servia pra engordar. Teve uma época que a gente também tinha muito peru. Tinha sempre seis ou sete. Era uma barulheira. Tu assobiava e eles respondiam. E eles eram meio brabos. Se fosse hoje, tu tinha que cuidar com os perus, não com os cachorros, porque eles te corriam atrás. E galinha. Galinha sempre teve. Era só correr atrás e puxar o pescoço. Bom, é só olhar: até hoje, tem galinha por tudo.

Mas aconteceu assim: naquele tempo também tinha gente sem vergonha. Cuida: Tinha um vizinho nosso que, quando tinha festa, bebia e bebia que nem um louco. E a mulher dele ficava lá, passando vergonha. Você sabe como é. E ele chegava até a oferecer a dita para os vizinhos, por brincadeira, claro (coisa de tchuco), fazendo preço e contando as “vantagens” da sua mulher. Ela ficava quieta. Na maioria das vezes nem sabia das bobagens que ele falava; porque era que nem hoje: os homens num canto, com suas conversas, e as mulheres noutro canto, com seus assuntos... É como nós, agora.

Só que o problema é que a tal mulher, deste que eu te falei que bebia, era muito formosa. Bonita mesmo. E, apesar de a gente saber que ele oferecia ela para os amigos assim, de brincadeira, a cabeça trabalhava. A gente ria e barganhava o preço, por brincadeira, mas a cabeça movimentava ideias.

Mas escuta o que eu vou te contar (e essa, quem aprontou foi o próprio irmão desse fulano que bebia): Naquele dia, veio vinho e vinho até que o homem não parava mais sentado. O churrasco era na casa desse senhor. O homem dormia na cadeira, tchuco que dava dó. E era apenas de manhã. Bom, acho que tu sabes onde essa história vai acabar, mas deixa eu contar: O irmão deste, que era mais íntimo da casa, pegou o homem e carregou até o quarto, para ele dormir um sono e não incomodar no jogo da escova. Maldito vício da bebida. Ficamos nós na área, jogando escoba, e as mulheres na cozinha, com suas coisas, e a piazada brincando com os cachorros no riachinho que passava detrás da casa. No fim já era hora de começar o churrasco. Eu fui pros lados da casa ajudar com o fogo. Naquela época eu já tinha uns trinta e poucos anos, tinha filhos e tudo.

De repente, vem um piá, mandado da mãe pra chamar o pai, que era pro pai correr pra casa ligeiro que as vacas tinham rebentado a cerca de novo e escaparam pra estrada. Tocamos o guri pra cozinha, porque achávamos que o pai dele estava lá, salgando a carne. Mas o piá voltou, porque o pai não estava lá; e junto veio as reclamações das mulheres para saber onde se metera a Josefa, que elas precisavam de saber onde que ela guardava os ovos pra maionese e não sei o quê...

Se entreolhamos e eu dei um grito: Pedro, toca pra casa que a tua alemoa mandou o guri te chamar, que as vacas estão na estrada. Gritamos assim, porque é mais fácil do que sair pra lá e pra cá procurando, porque a casa era bem grande, tinha a estrebaria, o porão, a parreira, as fruteiras, como saber? E eu estava com o sete-belo na mão, não queria parar o jogo, e se aquelas vacas fossem longe teríamos todos que ajudar.

Mas o homem estava perto, num quartinho de visitas com a janela que dava bem do lado de onde estávamos jogando, na área. Ele, o pai, ouviu e gritou de volta: “guri, diz pra mãe que eu tô espetando a carne e que depois eu vou lá!” [risos]

Foi dias depois que fiquei sabendo, porque ele mesmo me contou, que naquela hora ele estava naquele quarto com a mulher do próprio irmão, que estava dormindo bêbado no quarto do lado. Isso é coisa que acontecia e que, de repente, muita gente sabia mas não falava nada. E era questão de minutos: enquanto a gordura pingava nas brasas ou enquanto se jogava uma rodada de escova: era o tempo que precisava pra se fazer uma dessas. Mas, como saber? De repente, se não fossem essas coisas, não se fazia festa! Como saber?

Se eu contei pra alguém? Um que outro. É como meu nono me dizia: A carne é boa, mas se o churrasqueiro não sabe salgar e espetar, ele vai deixar pra quem sabe. Daí não é o caso de espalhar pra todo mundo. É pra ir lá e ajudar.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Lux(o)

os interesses
ocultos permeiam
perpassam a pele
as asas do inseto

da lâmpada, apenas
a luz a mariposa conhece
e obedece cega as regras da morte
e dos devidos usos das máscaras diversas...

- divirta-se, ó luz perversa!