quinta-feira, 26 de abril de 2012

Resumo da autoajuda jamais publicada (ou Matrix para exotéricos)

Recentemente foi descoberto (não se sabe por quem) que o sonho de subir na vida é efetivamente mais fácil de ser concretizado do que imaginávamos.
As últimas pesquisas (que só foram possíveis depois do assassinato de todas as ideologias pelo anjo Haziel) mostraram, enfim, a verdadeira natureza do Segredo e da Vida. A saber: “[...] nós não somos a espécie mais evoluída deste mundo. Exite uma inteligência invisível e superior.” (Fonte: espírito que não precisa mais de nome, via médium anônimo)
Os cientistas da nova era (todos ex-crianças-índigo-cristal) sabem, no entanto, que essa inteligência superior não é Deus. O que se discute nos círculos antroposóficos-blavatskynianos remanescentes é se essa inteligência superior foi criada por Deus ou se é criação de uma outra divindade. Sabe-se, contudo, que ela é manifesta e ultra-dimensional.
De qualquer forma, o que cabe a nós, reles serviçais, é nos preocuparmos em como fazer para comprar um carro novo. Dentro dessa nova visão do Projeto da Criação, sabe-se, agora, que a meta do ser humano não é (e jamais foi) a salvação. Existimos simplesmente para alimentar essa inteligência superior, invisível, manifesta e ultra-dimensional descrita anteriormente, e recebermos a paga por isso.
Pesquisadores com pós-doutorado em Mediunidade e Ciências Ocultas & Macabras observaram que a referida inteligência manifesta-se na forma de cidades e conglomerados urbanos. Depois que o profeta Sergey Brin recebeu dos céus os mega-pixels do Google Earth, ficou fácil observar com mais clareza como a Inteligência se comporta sobre a terra: ela cresce manifestadamente através da forma e dos elementos constituintes do que chamamos de cidades, incluindo, aí, a superestimada presença humana. Até então acreditávamos que éramos os únicos seres responsáveis pelas mudanças e transformações por nós empreendidas na superfície terrestre, mas estávamos enganados. Dentro dos desígnios da Inteligência, nosso papel é bem mais singelo. É semelhante ao dos porcos em relação à nossa espécie: servir de alimento.
As cidades crescem como tumores (e esta ideia não é nova) estendendo suas ramificações em busca de mais espaço para o cultivo de seres humanos, que são a base da sua existência. Elas, pasmem, alimentam-se de sangue e fezes humanas.
Agora sabemos que não somos, de forma alguma, o ápice da criação. Somos apenas uma granja, um cultivo para alimentar a Inteligência. Desse modo, quanto maior for nossa produtividade, maior será a recompensa que esse ser supremo nos dará. Basta uma pequena mudança em nossos hábitos para obtermos o prêmio. Coma mais e consuma mais. Coma, cague, pense e aja como um porco, e a cidade o recompensará com as benesses de que tanto precisa. Alcançarás o sucesso. Terás tudo o que necessitas, desde que não se furte à sua função essencial: chafurdar na própria merda, aceitar o chiqueiro como ele é e jamais questionar a Inteligência. O sucesso só depende de nós.
Esse é o segredo: você é o que você pensa, e você pensa o que deve pensar. Se furtar-se a essa missão divina certamente irá se juntar à turba de descontentes, resmungões, materialistas, não espiritualizados e vagabundos que, justamente por não se submeterem ao seu papel perante o mundo, encontram-se excluídos dessa sociedade maravilhosa que começamos a vislumbrar neste início de século.
Esperamos que, depois deste singelo manual, as pessoas consigam entender melhor as cidades onde vivem e possam oferecer a elas o que elas precisam. E todo o mais vos será acrescentado.
Ordem e Progresso!

sábado, 21 de abril de 2012

Descriminalização do aborto.


 


Só quem tem Deus no coração sabe o que é amor...”
Provérbio facebookiano

A recente decisão do STF sobre o aborto de fetos anencéfalos é motivo para fogos de artifício. Só não os solto porque esse gasto não estava previsto no meu orçamento. Explico (o motivo da festa, não o meu orçamento): a opção por interromper uma gestação é (ou deveria ser) uma decisão exclusiva das mulheres que se encontram nessa situação porque a elas compete dar continuidade ou não a uma coisa que está acontecendo dentro dos seus próprios corpos. Negar à mulher essa autoridade sobre o seu corpo é nada mais do que restringir-lhe a liberdade. Ou melhor: é nada mais do que continuar a restringir a sua liberdade. Engana-se o leitor que pensa que os tempos de opressão feminina perderam-se num passado medieval. Eles persistem. 
 
Repare que a maioria dos líderes religiosos (que, sem exceção, são contrários ao aborto sob quaisquer pretextos) são homens. Repare, ainda, que os líderes da maioria dos movimentos antiaborto são homens. Repare, enfim, que homens não engravidam. Isso seria o bastante para encerrar a discussão. Mas vamos além.

Eu disse que a opressão persiste. Não pensem que o assunto acabou depois do auê sobre um certo Rafinha Bastos que fazia piadas sobre mulheres estupradas e que queria comer não sei quem com feto e tudo, pois a moda continua (com menos alarde, já que agora o “humorista” aprendeu a não citar nomes): segundo esses reacionários (num disparate proferido antes ou depois do caso Vanessa, não lembro) as mulheres não deveriam sequer amamentar em público. Seria feio, nojento, etc., a não ser que fossem gostosas. Quer discurso mais sexista? Agora, além de tudo, os homens escolhem quem pode mostrar os seios e quem deve escondê-los. 

- Ah, mas é só um programa de humor...

Não. Não é só um programa de humor. É a reprodução constante e sistemática de um discurso que não é de hoje. O humor é uma arma e uma ferramenta perigosa. Disfarçado sob o manto de humorista e protegido pelas gargalhadas de uma plateia desatenta é possível professar páginas e páginas de um Mein Kampf de absurdos sem que ninguém perceba o que está acontecendo.

Da mesma fora, protegido por um belo terno e acompanhado de cânticos, améns e aleluias, é possível declamar a mesma poesia (numa edição mais antiga, talvez) sem que ninguém note a semelhança. E lá se vai a mulher, de cabeça baixa, fazer o que lhe é ordenado: servir aos homens, parir seus herdeiros, amamentá-los às escondidas (a menos que os seios sejam agradáveis à lascívia masculina) e fazer coro às regras que atravessam a história - todas ditadas por homens. É o poder da esposa que ora.

Por isso a decisão do STF deve ser comemorada. É um passo a mais em direção à liberdade, sobretudo a das mulheres. Feministas do mundo inteiro, comemorai! O estado mostrou que continua sendo laico, a despeito de símbolos religiosos pendurados em repartições públicas (dos males, o menor). Um avanço, sem dúvida. Há, entretanto, quem tem a esperança de que o Congresso reverta a decisão do STF. Bem, se isso ocorrer, talvez seja o caso de trocar os bandeiraços por manifestações a base de coquetel molotov. Talvez. No dia em que o Congresso questionar uma posição como esta – a de não obrigar uma mulher a levar a cabo a gestação de um corpo sem cérebro - não estaremos longe de virar uma república fundamentalista cristã, como alguém já profetizou por aí. Nada contra cristãos em particular. Só contra o fundamentalismo. 
 
A questão não é preservar o direito à vida (vida de um grupamento celular sem consciência), mas preservar o direito de as pessoas decidirem pelo que pode ou não acontecer dentro de seus próprios corpos. Digam o que quiserem, mas enquanto estiver dentro da barriga de uma gestante, o que quer que lá esteja, só deveria permanecer lá com o consentimento da mulher. Depois que essa criatura tiver nascido, sob amor e vontade da mãe, defenderei o direito dela viver como defenderei o de qualquer outra pessoa. Mas não antes. Quem vive pregando que não temos o direito de “tirar vidas” esquece que temos o dever de diminuir o sofrimento. Esquece que às vezes o estuprador (como um deus) também dá e tira vidas. Esquece que uma gravidez de risco coloca duas vidas a perder. Esquece que um feto anencéfalo não é um ser humano senão na aparência.

Dar às mulheres o justo direito de decidir sobre o que pode ou não acontecer dentro delas mesmas não vai transformar o mundo num matadouro de crianças. Maternidade é um direito, não um dever. Quem é contrário ao aborto em casos de estupro, risco de vida e anencefalia continuará tendo o direito de levar adiante a sua própria gravidez quando se encontrar numa situação semelhante - mas não pode obrigar as outras pessoas a fazer o mesmo.

Somos seres humanos. Faz mais de 200 mil anos que nosso cérebro deixou de ter apenas a função de dizer ao estômago quando agir. Hoje ele serve também para decorar telefones de clientes e fornecedores. No entanto, talvez a sua maior função seja a de nos tornar humanos - os queridinhos da criação - esses bichos estranhos que falam de amor.





sexta-feira, 20 de abril de 2012