sábado, 12 de fevereiro de 2011

Conto escrito num dia de chuva

Naquele dia o céu amanheceu mais nublado do que de costume. Não houve cantoria de pássaros nem de crianças brincando de roda na creche ao lado. De sua cama podia ver apenas que já era dia e que o relógio havia parado antes do horário de despertar. Malditos relógios! Ele não teve dúvida: estava atrasado.

Naquela manhã não houve café. Não houve jornal nem cigarro. Ouviu-se apenas o roque-roque de uma escova de dentes fazendo o seu trabalho de autômato e o farfalhar de calças subindo pelas pernas. Por Deus, onde estará o guarda-chuva? Teve que sair sem ele.

Na estrada o cigarro teve que disputar a atenção do seu mestre com o volante do carro. A fumaça desenhava formas familiares. O céu estava escuro. Vai chover logo.
Naquela manhã não houve trânsito. Não era domingo, nem feriado. Não fazia sentido. Pensou que chegaria atrasado mas, talvez, poderia estar enganado. Calcular o tempo que demora para ir de um lugar a outro não era o seu forte. Sempre preocupava-se em acrescentar minutos a mais para a eventualidade de um pneu furado ou de os semáforos estarem, a maioria, fechados. Mas (como era de se esperar) não houve pneus furados. Só um sinal estava vermelho.

Naquela manhã parou para comprar um guarda-chuva. Mas como são feios os guarda-chuvas! E inúteis e desprezíveis! Sempre se perdem e se intrometem em frases falseando o seu sentido.  Iria precisar dele para proteger a cabeça na volta.

De volta à estrada, subiu mais uma ladeira e estacionou perto de uma praça. Saiu do carro e apertou um botão. Gostava de afastar-se do carro enquanto os vidros subiam. Aquilo fazia as coisas parecerem um filme americano, daqueles em que tudo é perfeito e o protagonista é sempre um herói. E nosso herói estava numa pequena e perfeita cidade onde os raros e perfeitos habitantes que passavam resmungavam bons-dias olhando para os pés.

Andou uns vinte metros e sentou-se num banco à sombra de um plátano. Este último continha uma inscrição: "Paulo e Patrícia", dentro de uma tentativa de coração feito a canivete. O banco também portava suas artes, porém vulgares, escritas a líquido corretivo: a caricatura de um pênis, palavrões e ameaças a honra da mãe de quem, por ventura, sentasse ali. Havia tempo para mais um cigarro. As nuvens permitiam.

Naquele dia apareceu uma mulher com uma jovem. Treze anos, talvez. Não olhou para a menina.

-- Deixei a sacristia aberta, disse a mulher. Quando terminarem, você sai pela frente e ela pelos fundos.
Ela, de fato, saiu pela porta de trás, talvez mais cedo do que ela própria esperava. Ele permaneceu em silêncio. Olhou à sua volta. Uma pia simplória. Um armário com batinas. Uma janelinha que mostrava um céu que não poderia ficar mais negro. Olhou pela porta que dava acesso ao interior da igreja. No tabernáculo, Deus dormia. Principiava a chuva, providencialmente torrencial.

Diziam que ele era pai, mas padre ele sabia que não era.  Mesmo assim, andou até o armário e vestiu a batina. Em frente ao espelho ajustou a posição da estola. Gostou da sua imagem refletida. "Imagem e perfeição", disse para si mesmo. Seria sua melhor história, se alguém acreditasse nela.

Naquele dia andou pelo corredor central da nave cantarolando Adeste Fidelis. Lá fora, porém, o céu despejava rajadas de fogo e água. À porta da igreja a cidade não passava de um grande cemitério lamacento.

-- Estão todos mortos. 

Ao longe andava a menina com o guarda-chuva do homem e uma criança nos braços. Ele a reconheceu. 

-- Estão todos mortos.

Havia, agora, uma cidade inteira a sepultar. A chuva fazia o seu trabalho.






2 comentários:

  1. Pô, eu adorava o endereço Eletrofalo. Ele me parecia mandar Freud à merda.
    A

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  2. E mandava...

    Mas eu ainda tenho que comer muito feijão antes de mandar Freud à merda.

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