“Há vinte anos atrás, meu sonho era ter trinta anos. Mas que merda de
sonho era aquele?!” Declaração
de um maluco de estrada
Eu estava almoçando
alegremente quando, da mesa ao lado, ouvi uma voz dizendo à outra,
com notas sensuais: “olha lá fora, meu sonho de consumo”.
Mesmo sabendo que a
conversa não era comigo, não resisti e, discretamente, olhei pela
janela: um veloster.
Olhei
de novo à procura de uma “porscheta”, uma “ferrarinha” ou
uma “lamborgheta”, mas não. O sonho de consumo do meliante era
mesmo aquele carrinho que, visto de trás, por algum motivo me lembra
um grostoli, e que, apesar de estar fora da minha realidade
econômica, nem de longe mereceria o rótulo de “sonho de
consumo”. Mas, enfim, cada um com seus “cada uma!”...
Só
que os olhos daquele jovem de terninho brilhavam olhando o veloster
desfilar lentamente. Foi então que me toquei que nem pra
ser ambiciosas as pessoas se esforçam. Vendem a alma ao diabo em
horas-extras intermináveis, e não querem mais do que um veloster.
Tudo bem desejar um carrinho que custa o absurdo de oitenta mil
dinheiros, mas chamar isso de sonho de consumo é exagero. Deve ser
coisa de auto estima baixa.
Na
verdade eu sempre desconfiei de pessoas que querem saber qual o sonho
de consumo dos outros, porque elas não entendem que há pessoas que
não têm isso! Aliás, o que ando tendo ultimamente (ou desde os 17
anos) não são sonhos de consumo, mas algo mais para sonhos de
desconsumo.
Sabe
o que seria legal? Ganhar vários milhões na Mega-Sena e separar uns
100 mil em notas de cinquenta, jogar na churrasqueira, tascar fogo e
assar um salsichão. E daqueles bem bagaceiros. Seria “da hora”,
como dizem. É claro que eu não
queimaria tudo, e que gastaria o resto, mas, em última instância,
gastar emocionalmente o dinheiro ganho na Mega-Sena para compensar
alguns anos de frustração financeira, dar para caridade, ou
queimá-lo na churrasqueira para assar um salsichão são coisas
muito parecidas – as três alternativas podem proporcionar um indescritível prazer
ao infeliz milionário,
e é a isso que viemos, acredite você ou não.
Teoria do terapeuta do Caos:
Felicidade é poder fumar seu tabaco bagaceiro em uma nota de cem
dólares (ou comer polenta brustolada no Festiqueijo)
Por falar nisso, vocês viram que o Festiqueijo 2013 vai custar mais
de oitenta pilas? Tá de graça, essa bagaça, né? Nem vou falar
nada, já disse tudo sobre isso aqui e aqui (é só mudar o ano, que
o resto é a mesma coisa). Mas sabem o que também saria legal? Fazer
um festival paralelo ao Festiqueijo (e clandestino, obviamente) no
melhor estilo desconsumista. Os organizadores percorreriam as
colônias em busca daqueles queijos que o pessoal do interior faz e
vende na informalidade (esse, aliás, é o VERDADEIRO sabor da serra,
se querem saber), a procura também das melhores cachaças produzidas
nos porões mais obscuros da zona mais rural, das melhores bolas de
pinhão e de uns porquinhos pra fazer os salames. O festival seria
animado pelos melhores véios gaiteiros da região (que quase
ninguém conhece obviamente) além de atrações alternativas
(alternativas de verdade) como as bandas mais underground da
serra (que também quase ninguém conhece), enquanto que, do outro
lado do salão, ficaria um pessoal responsável por assar os pinhões
na chapa e matar os porcos para fazer o salame na hora, ali
mesmo, daquele jeito que os colonos sempre fizeram e que constitui a
VERDADEIRA cultura da nossa terra. A gente só trairia nossa cultura
na questão do preço do ingresso, mantendo um padrão de lucro
zero-prejuízo mínimo, já que tudo seria doado pelas pessoas
interessadas em fazer uma festa de verdade.
-><-
Este texto inócuo não foi escrito de uma só vez (ninguém tem tempo pra isso). Antes de
terminar essa coisa, num outro dia enquanto eu, novamente, almoçava
alegremente, voltei a ouvir as vozes (que agora já não sei se vinham
da outra mesa ou da minha cabeça) que comentavam sobre a ansiedade
de participar do nosso Festiqueijo, que “ia ser muito legal”,
etc. Uns gostavam do evento, outros nem tanto. Novamente olhei pela
janela do restaurante, como fiz da outra vez (procurando o “sonho
de consumo” daquele desconhecido) e pude avistar a entrada do Salão
Paroquial (o local onde tradicionalmente ocorre o Festiqueijo). Não
pude deixar de lembrar das primeiras edições do evento, quando
íamos com a família naquela festa bonita. Lembrei da primeira vez
que ganhei “permissão” de ir ao Festiqueijo sozinho - sob as
recomendações do pai de “só tomar guaraná” e dos avisos da
mãe de “se encontrar a dinda avisa que os crochês estão
prontos”. E nós, os garotos dos anos 80, entrávamos, bebíamos o
guaraná, entregávamos o recado à dinda... Mas, acima de tudo,
encontrávamos amores e amigos que hoje não existem mais, numa festa
que não existe mais.
E tive a impressão de que, apesar de tudo, os desconhecidos da mesa
ao lado eram animados pelo mesmo espírito que animara uma criança
qualquer há 20 anos atrás. A perspectiva de uma simples festa lhes trazia uma alegria ingênua, mas genuína. Se assim fosse, a festa não seria de todo
ruim, afinal, as pessoas estavam se permitindo ter sentimentos que
hoje estão à beira da proibição, estavam dispostas a se
entregar às mãos da inocência e dos instintos puros por algumas
horas, a reencontrar amores e amigos de vinte anos atrás com o
sorriso de uma criança que esquece o erro do amiguinho e desconhece
os podres da vida. Naquele instante eu pensei que ia fazer as pazes
com muita coisa do presente e do passado. Eu ia fazer as pazes...
...só que o veloster passou outra vez, lentamente. E todos
voltaram a falar de sonhos de consumo e de como ainda tinham muito trabalho pela frente.
Terminei o copo de suco,
passei o guardanapo nos lábios e saí sem comer a sobremesa.