sexta-feira, 19 de abril de 2013

A música da vida (uma quase autoajuda), com final desconexo e possível continuação...

Um amigo chamado Jonatan, autor do blogue Carona com Caronte, músico, filósofo e também iniciado nas artes discordianas, escreveu, recentemente, um bonito texto utilizando a metáfora da vida como uma grande peça musical, a qual somos convidados (ou convocados) a tocar, tendo que adaptar nossas melodias às progressões de acordes que a música da vida nos impõe.

O texto do amigo Jonatan, ao primeiro olhar, pode apresentar ares de autoajuda. Mas não se engane. Ele não é isso. Tanto que me levou a refletir sobre aquela metáfora, de modo que senti, de repente, uma vontade louca (ui!) de reinventar o texto (para não dizer plagiar), apresentando, no entanto, pequenas mudanças em relação ao ponto de vista.

Sem dúvida é bonito pensar a vida como uma música, e pensar que nós podemos ser co-autores dela. Ao longo da leitura, fiquei pensando sobre que música seria a minha vida. Qual estilo? Que ritmo? A que tipos de acordes devo adaptar minha melodia?

A essa altura das reflexões eu já havia imaginado que a metáfora apresentada é controversa. Se eu sou convidado, através da minha existência, a tocar uma melodia sobre uma base harmônica pré-determinada, pergunto: quem é o regente da peça? Quem toca a progressão de acordes? A vida? Dentro dessa metáfora, quem é o maestro? Um ser exterior a ela (como o compositor é exterior à música)? Note que eu ainda não respondi à pergunta “que tipo de música é a minha vida?”

Como bom materialista que sou, inferi, desde logo, que não há autor nessa música. O texto do Carona com Caronte também parece apontar nessa direção. Se não há compositor, a execução é livre. Então é um improviso? Além disso, se há acordes acompanhando minha melodia, devo supor que eles são tocados pelos outros músicos da vida ao meu redor. Então saímos do âmbito pessoal (minha vida, minha música) para o coletivo (minha vida, nossa música). Vamos ver.

Você já tocou numa orquestra ou numa banda? Mesmo que a resposta seja não, é fácil imaginar como seria. Assista a uma apresentação de alguma orquestra, e eleja um instrumento para representar você. Vamos supor que você seja um das flautas, lá num cantinho. É fácil perceber que, sentado lá, naquela cadeira, é possível ouvir alguns instrumentos que soam com mais intensidade (como as outras flautas próximas aos seus ouvidos, ou a retumbante percussão lá atrás), outros com menos intensidade (como aquele violino lá longe), alguns estão momentaneamente calados (como os trompetes, por exemplo), um outro desafinado lá do outro lado, e assim vai... Também não é difícil notar que diferentes instrumentos estão tocando notas diferentes, em tempos diferentes, montando, desse modo, uma base harmônica e rítmica para uma melodia principal (ou não, dependendo da música), ou qualquer coisa que seja bela e agradável aos ouvidos da plateia. Elevando a teoria musical à escala planetária e forçando a metáfora a seus extremos interpretativos, podemos dizer que o mundo é uma orquestra com mais de sete bilhões de músicos. Não há maestro manuseando a batuta (a não ser aquele que dá início e fim às vidas específicas, a morte). Não há composição escrita na pauta. E não há consenso sobre como essa música vai ser interpretada, exceto, talvez, algumas “combinações” aqui e acolá.

A vida é um free jazz de Ornette Coleman interpretada por mais de 7 bilhões de músicos surdos

Já pensou? E agora, como fica ouvir a linha melódica daquela flauta que está lá do outro lado do mundo (ou do outro lado da rua) se a polícia te deixa surdo com seus trombones e tubas? Se a melodia da gaita de boca do bêbado incomoda? Se os clarins dourados dos sacerdotes não param? Se o rufar de tambores da manada de caminhões não cessa? A quem devo ouvir? Que diabos, afinal, eu devo tocar?

A diferença, é claro, é que somos uma banda com relativa mobilidade. Você pode sair da sua cadeira e tocar a nota mais aguda da sua flauta no ouvido do trombonista. Há uma relativa liberdade, embora ela esteja sempre atrelada a certos pa$$aportes e a eventuais consequências. Você já ouviu um free jazz?



Por isso temo que não existam “momentos de tranquilidade” e “momentos de incerteza” como propõe os acordes dominantes e subdominantes de uma música (eles aparecem de forma caótica, quando a massa de instrumentos ao seu redor entende que deve tocar assim, mas não de modo pré-determinado ou fatalista). Bancando o escritor de autoajuda, não é exagero afirmar que você pode se afastar das tubas e se aproximar dos violinos, se achar que pode construir com eles uma harmonia mais bela. Porém, não há certeza de nada (talvez, depois de flertar com os violinos, você venha a sentir falta da fanfarra dos trombones...) A única certeza é que nossos compassos estão numerados e contados. E não é possível ver claramente onde termina.

O nome deste blogue não é Terapia do Caos por acaso

No fim das contas, obviamente, é melhor essa cacofonia delirante do que o silêncio absoluto. Ou não. Não sei. O silêncio terá seus lugares, seus compassos marcados com pausa. Ainda há (embora raros) espaços (geográficos e psicológicos) onde podemos praticar o silêncio. Você pode praticá-lo coerentemente no meio do solo da soprano, ou retirar-se momentaneamente para locais mais sossegados. Da mesma forma, você pode rugir os acordes de sua guitarra em ensurdecedores ritornellos, no mesmo instante em que outro instrumentista da vida chega ao seu fine. Ao mesmo tempo que você executa essa peça de improviso, você pode ser um maestro, dando ordem de da capo, jogando ao mundo uma nova pauta em branco a ser preenchida por um novo alguém que, como você, também se sentirá perdido, a menos que opte por enganar a si mesmo com mentiras ou coisas do outro mundo, obtendo, assim, uma pequena e insossa melodia que só ele ouve (porque é surdo para o mundo), e que considerará perfeita por algum tempo (no máximo até o momento do fine, no entanto). Mas lembre-se que, nessa admirável composição cósmica, não há espectador no recinto (além de nós mesmos). Nem maestro. Portanto, nada deverá ser tachado de perfeito nem de repulsivo se seus ouvidos não puderem ouvir as notas tocadas pelos integrantes da orquestra inteira.

A flauta só é flauta quando alguém a toca

Antes e depois disso ela não passa de um cano de metal bonito e sem sentido. É por isso que todo mundo quer ser o regente da humanidade. De Odin, passando por Amón-Rá, Zeus, Alá e Jesus Cristo, até Barack Obamma ou Hebe Camargo, todos quiseram, querem ou gostariam de ser o regente dessa orquestra e tocar a música que eles considerariam mais apropriada. O mais recente dos deuses já inventados ou manifestados através da cultura humana (o atual “Deus”) é um dos mais fortes candidatos a maestro do mundo, e já conseguiu microfones e potentes amplificadores para fazer sua música soar mais alto que as outras, tentando assim angariar mais instrumentistas à sua causa. Ele não quer que toquemos somente hinos de louvor em seu nome. Ele quer tirar de nós a liberdade de fazer a própria música, do jeito que quisermos e com as pessoas que quisermos. Quer dar moedas a seus músicos mercenários em troca de uma monotonia submissa e sem sentido que destrói a riqueza e a complexidade dos acordes dissonantes. Enfim, ele quer ser o único espectador desse espetáculo, e quer uma música só para ele. Só que não (hehehehe).

La bella polenta

Essa é a canção que tocamos na nossa região (serra gaúcha, pra quem desconhece). Sempre tem algum desafinado no meio, uma ou outra pessoa tocando outra coisa, mas, grosso modo, o que se ouve é um hino de louvor ao trabalho e à conquista de bens materiais. Nossa tônica (talvez até mais do que no “resto do mundo”) é o “trabalho”. Seu refrão é “quem mais pega, mais possui”. Quando as crianças nascem, desde logo lhes são ensinadas as notas a serem tocadas para perpetuar essa canção. Se você vier de fora, de outro lugar, com outra canção diferente... danou-se. Marginaliza-se muito por aqui, por conta de uma certa surdez congênita que impede-nos de ouvir outros arranjos, outras harmonias. Se quiser se dar bem por essas bandas, aprenda La bella polenta.

Sobre a liberdade (o funk também fala da amor)

Agora, se quiser ser “livre” (entre aspas mesmo) e arcar com as consequências, aprenda a ouvir a todos e adaptar sua melodia. Aprenda outros estilos, outras sonoridades. Aprenda a interagir como um ser que cria, não como um robô. A graça do free jazz talvez seja a criação coletiva. Mas não é só criar em grupo, é criar na hora, no improviso, sobretudo ouvindo o que seus companheiros estão tocando. Além disso, também chama a atenção a liberdade, talvez excessiva (não acredito que usei as palavras liberdade e excessiva na mesma frase!) com que esses músicos trabalham. O sábio Tom Zé já disse, certa vez, que a própria escala diatônica (o famoso dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) é uma prisão musical, um limite imposto que exclui todas as frequências sonoras existentes de um dó até outro, elegendo apenas 12 notas como um cristo que elege 12 apóstolos! Radical? É que existe mais coisas entre o funk e o erudito do que sonha nossa vã filosofia.

(CONTINUA NO PRÓXIMO CAPÍTULO... TALVEZ...)


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