Um amigo chamado
Jonatan, autor do blogue Carona com Caronte, músico, filósofo e
também iniciado nas artes discordianas, escreveu, recentemente, um
bonito texto utilizando a metáfora da vida como uma grande peça
musical, a qual somos convidados (ou convocados) a tocar, tendo que
adaptar nossas melodias às progressões de acordes que a música da
vida nos impõe.
O texto do amigo
Jonatan, ao primeiro olhar, pode apresentar ares de autoajuda. Mas
não se engane. Ele não é isso. Tanto que me levou a refletir
sobre aquela metáfora, de modo que senti, de repente, uma vontade
louca (ui!) de reinventar o texto (para não dizer plagiar),
apresentando, no entanto, pequenas mudanças em relação ao ponto de
vista.
Sem dúvida é bonito
pensar a vida como uma música, e pensar que nós podemos ser
co-autores dela. Ao longo da leitura, fiquei pensando sobre que
música seria a minha vida. Qual estilo? Que ritmo? A que tipos de
acordes devo adaptar minha melodia?
A essa altura das
reflexões eu já havia imaginado que a metáfora apresentada é
controversa. Se eu sou convidado, através da minha existência, a
tocar uma melodia sobre uma base harmônica pré-determinada,
pergunto: quem é o regente da peça? Quem toca a progressão de
acordes? A vida? Dentro dessa metáfora, quem é o maestro? Um ser
exterior a ela (como o compositor é exterior à música)? Note que
eu ainda não respondi à pergunta “que tipo de música é a minha
vida?”
Como bom materialista
que sou, inferi, desde logo, que não há autor nessa música. O
texto do Carona com Caronte também parece apontar nessa direção.
Se não há compositor, a execução é livre. Então é um improviso? Além disso, se há acordes acompanhando minha melodia, devo
supor que eles são tocados pelos outros músicos da vida ao meu
redor. Então saímos do âmbito pessoal (minha vida, minha música)
para o coletivo (minha vida, nossa música). Vamos ver.
Você
já tocou numa orquestra ou numa banda? Mesmo que a resposta seja
não, é fácil imaginar como seria. Assista a uma apresentação de
alguma orquestra, e eleja um instrumento para representar você.
Vamos supor que você seja um das flautas, lá num cantinho. É fácil
perceber que, sentado lá, naquela cadeira, é possível ouvir alguns
instrumentos que soam com mais intensidade (como as outras flautas
próximas aos seus ouvidos, ou a retumbante percussão lá atrás),
outros com menos intensidade (como aquele violino lá longe), alguns
estão momentaneamente calados (como os trompetes, por exemplo), um
outro desafinado lá do outro lado, e assim vai... Também não é
difícil notar que diferentes instrumentos estão tocando notas
diferentes, em tempos diferentes, montando, desse modo, uma base
harmônica e rítmica para uma melodia principal (ou não, dependendo
da música), ou qualquer coisa que seja bela e agradável aos ouvidos
da plateia. Elevando a teoria musical à escala planetária e
forçando a metáfora a seus extremos interpretativos, podemos dizer
que o mundo é uma orquestra com mais de sete bilhões de músicos.
Não há maestro manuseando a batuta (a não ser aquele que dá
início e fim às vidas específicas, a morte). Não há composição
escrita na pauta. E não há consenso sobre como essa música vai ser
interpretada, exceto, talvez, algumas “combinações” aqui e
acolá.
A
vida é um free jazz de Ornette Coleman interpretada por mais de 7
bilhões de músicos surdos
Já
pensou? E agora, como fica ouvir a linha melódica daquela flauta que
está lá do outro lado do mundo (ou do outro lado da rua) se a
polícia te deixa surdo com seus trombones e tubas? Se a melodia da
gaita de boca do bêbado incomoda? Se os clarins dourados dos
sacerdotes não param? Se o rufar de tambores da manada de caminhões
não cessa? A quem devo ouvir? Que diabos, afinal, eu devo tocar?
A
diferença, é claro, é que somos uma banda com relativa mobilidade.
Você pode sair da sua cadeira e tocar a nota mais aguda da sua
flauta no ouvido do trombonista. Há uma relativa liberdade, embora
ela esteja sempre atrelada a certos pa$$aportes e a eventuais
consequências. Você já ouviu um free jazz?
Por
isso temo que não existam “momentos de tranquilidade” e
“momentos de incerteza” como propõe os acordes dominantes e
subdominantes de uma música (eles aparecem de forma caótica, quando
a massa de instrumentos ao seu redor entende que deve tocar assim,
mas não de modo pré-determinado ou fatalista). Bancando o escritor
de autoajuda, não é exagero afirmar que você pode se afastar das
tubas e se aproximar dos violinos, se achar que pode construir com
eles uma harmonia mais bela. Porém, não há certeza de nada
(talvez, depois de flertar com os violinos, você venha a sentir
falta da fanfarra dos trombones...) A única certeza é que nossos
compassos estão numerados e contados. E não é possível ver
claramente onde termina.
O
nome deste blogue não é Terapia do Caos por acaso
No
fim das contas, obviamente, é melhor essa cacofonia delirante do que
o silêncio absoluto. Ou não. Não sei. O silêncio terá seus
lugares, seus compassos marcados com pausa. Ainda há (embora raros)
espaços (geográficos e psicológicos) onde podemos praticar o
silêncio. Você pode praticá-lo coerentemente no meio do solo da
soprano, ou retirar-se momentaneamente para locais mais sossegados.
Da mesma forma, você pode rugir os acordes de sua guitarra em
ensurdecedores ritornellos,
no mesmo instante em que outro instrumentista da vida chega ao seu
fine. Ao
mesmo tempo que você executa essa peça de improviso, você pode ser
um maestro, dando ordem de da
capo, jogando ao mundo uma nova pauta em branco a ser preenchida por um novo alguém
que, como você, também se sentirá perdido, a menos que opte por
enganar a si mesmo com mentiras ou coisas do outro mundo, obtendo,
assim, uma pequena e insossa melodia que só ele ouve (porque é surdo para o mundo), e que considerará
perfeita por algum tempo (no máximo até o momento do fine,
no
entanto). Mas lembre-se que, nessa admirável composição cósmica,
não há espectador no recinto (além de nós mesmos). Nem maestro.
Portanto, nada deverá ser tachado de perfeito nem de repulsivo se
seus ouvidos não puderem ouvir as notas tocadas pelos integrantes da
orquestra inteira.
A
flauta só é flauta quando alguém a toca
Antes
e depois disso ela não passa de um cano de metal bonito e sem
sentido. É por isso que todo mundo quer ser o regente da humanidade.
De Odin, passando por Amón-Rá, Zeus, Alá e Jesus Cristo, até
Barack Obamma ou Hebe Camargo, todos quiseram, querem ou gostariam de
ser o regente dessa orquestra e tocar a música que eles considerariam mais
apropriada. O mais recente dos deuses já inventados ou manifestados
através da cultura humana (o atual “Deus”) é um dos mais fortes
candidatos a maestro do mundo, e já conseguiu microfones e potentes
amplificadores para fazer sua música soar mais alto que as outras,
tentando assim angariar mais instrumentistas à sua causa. Ele não quer
que toquemos somente hinos de louvor em seu nome. Ele quer tirar de
nós a liberdade de fazer a própria música, do jeito que quisermos
e com as pessoas que quisermos. Quer dar moedas a seus músicos
mercenários em troca de uma monotonia submissa e sem sentido que
destrói a riqueza e a complexidade dos acordes dissonantes. Enfim,
ele quer ser o único espectador desse espetáculo, e quer uma música
só para ele. Só que não (hehehehe).
La
bella polenta
Essa
é a canção que tocamos na nossa região (serra gaúcha, pra quem
desconhece). Sempre tem algum desafinado no meio, uma ou outra pessoa
tocando outra coisa, mas, grosso modo, o que se ouve é um hino de
louvor ao trabalho e à conquista de bens materiais. Nossa tônica
(talvez até mais do que no “resto do mundo”) é o “trabalho”.
Seu refrão é “quem mais pega, mais possui”. Quando as crianças
nascem, desde logo lhes são ensinadas as notas a serem tocadas para
perpetuar essa canção. Se você vier de fora, de outro lugar, com
outra canção diferente... danou-se. Marginaliza-se muito por aqui,
por conta de uma certa surdez congênita que impede-nos de ouvir
outros arranjos, outras harmonias. Se quiser se dar bem por essas
bandas, aprenda La
bella polenta.
Sobre
a liberdade (o funk também fala da amor)
Agora,
se quiser ser “livre” (entre aspas mesmo) e arcar com as
consequências, aprenda a ouvir a todos e adaptar sua melodia.
Aprenda outros estilos, outras sonoridades. Aprenda a interagir como
um ser que cria,
não como um robô. A graça do free jazz talvez seja a criação
coletiva. Mas não é só criar em grupo, é criar na hora, no
improviso, sobretudo ouvindo
o que seus companheiros estão tocando. Além disso, também chama a
atenção a liberdade, talvez excessiva (não acredito que usei as
palavras liberdade
e
excessiva
na mesma frase!) com que esses músicos trabalham. O sábio Tom Zé
já disse, certa vez, que a própria escala diatônica (o famoso dó,
ré, mi, fá, sol, lá, si) é uma prisão musical, um limite imposto
que exclui todas as frequências sonoras existentes de um dó até
outro, elegendo apenas 12 notas como um cristo que elege 12
apóstolos! Radical? É que existe mais coisas entre o funk e o
erudito do que sonha nossa vã filosofia.
(CONTINUA
NO PRÓXIMO CAPÍTULO... TALVEZ...)
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