sexta-feira, 6 de maio de 2011

Storie e racconti

Storie e raconti são, na verdade, histórias de nonos. Velhinhos anônimos (de fato ou por conveniência) que, nessa série, serão tratadas como mera fonte de causos e assuntos para o infeliz exercício da narrativa escrita. Por isso, desde já assumo que estou, sim, cometendo o pecado de reduzir os relatos dessas preciosas fontes históricas (que seriam os nonos) a tentativas, talvez infrutíferas (porém prazerosas), de literatura. Entretanto, sugiro aos que, por ventura, se incomodarem com tal sacrilégio, que, por hora, denunciem-me ao Bispo. Ele saberá o que fazer. Além do mais, sugiro, ainda, que os descontentes busquem por si mesmos seus nonos e divirtam-se. As colônias e asilos estão abarrotados de velhinhos ansiosos por contar-lhes suas aventuras. E certamente é mais agradável ouvi-las dos próprios nonos do que ler esses meus textos, porque um texto é sempre um texto: é pensado, e, por isso mesmo, falseado. Falseado, talvez, até o extremo de pôr em perigo nossa história, nossa mitologia e nossos heróis. Mas não tão falseado que não deixe restar alguma verdade.

Os nonos nos contam histórias que, infelizmente, desaparecem junto com a neblina das segundas-feiras de manhã. As histórias que sobrevivem e ganham seu trono de papel são, invariavelmente, diferentes destas que irei registrar. Aquelas são padronizadas e mal conseguem ocultar seus objetivos moralizantes e condicionamentos ideológicos. Estas são confusas e obscuras, beirando, às vezes, a obscenidade. Os nonos que as contam deixam transparecer aspectos que o ouvinte desatento desconsideraria ou sequer perceberia: gestos, trejeitos e pontos finais cravados com o roncar de uma bomba de chimarrão. E longos silêncios que, quando interrompidos, não deixam de estampar a frustração nos semblantes de seus narradores. Narradores de silêncios. De causos que não foram recordados ou inventados para serem contados ao netinho ou à plateia em delírio, mas que vieram à tona sem motivo aparente, no fogo do acaso, saídos do fundo de um baú que já não se lembra bem das datas, mas que reconhece claramente os fantasmas desenhados pela fumaça de um palheiro. Histórias do nada, que não deveriam ter sido contadas.

O FIM DE SEMANA, O CHURRASCO E O VINHO 
(Livre adaptação de história contada por D. N. P.)

Antigamente não se fazia churrasco assim, como se faz hoje. Me lembro que tínhamos que meter as carnes em espetos feitos de pau (às vezes de bambu) e enfiá-los no chão, em roda de um fogo feito de lenha num buraco não muito fundo, ou numa churrasqueira improvisada com tijolos empilhados. Tínhamos que escolher as varas de acordo: não podia ser muito seca, nem muito verde. Nem muito grossa, nem muito fina. Depois, era descascar a facão para ela ficar mais ou menos reta e poder receber o pedaço de carne. Eu era bem pequeno, mas lembro do avô fazendo esses espetos de pau.

A carne não era furada na hora, com o espeto; ela já tinha que vir furada. A turma que matava o animal já cortava a carne de acordo e já fazia os furos mais ou menos certos pra poder meter os espetos de pau. Lembro que a carne era boa. Era preciso bem mais tempo para preparar um churrasco, que só saía se fosse sol. Os parentes, volta e meia se reuniam para fazer o churrasco.

A gente não era rica, mas não era pobre. Não precisava de esperar um casamento pra fazer churrasco. Isso é bobagem. O pai sempre tinha, no chiqueiro, um porquinho para cada filho, e a gente engordava. Também tinha os novilhos: se não servia pra canga, servia pra engordar. Teve uma época que a gente também tinha muito peru. Tinha sempre seis ou sete. Era uma barulheira. Tu assobiava e eles respondiam. E eles eram meio brabos. Se fosse hoje, tu tinha que cuidar com os perus, não com os cachorros, porque eles te corriam atrás. E galinha. Galinha sempre teve. Era só correr atrás e puxar o pescoço. Bom, é só olhar: até hoje, tem galinha por tudo.

Mas aconteceu assim: naquele tempo também tinha gente sem vergonha. Cuida: Tinha um vizinho nosso que, quando tinha festa, bebia e bebia que nem um louco. E a mulher dele ficava lá, passando vergonha. Você sabe como é. E ele chegava até a oferecer a dita para os vizinhos, por brincadeira, claro (coisa de tchuco), fazendo preço e contando as “vantagens” da sua mulher. Ela ficava quieta. Na maioria das vezes nem sabia das bobagens que ele falava; porque era que nem hoje: os homens num canto, com suas conversas, e as mulheres noutro canto, com seus assuntos... É como nós, agora.

Só que o problema é que a tal mulher, deste que eu te falei que bebia, era muito formosa. Bonita mesmo. E, apesar de a gente saber que ele oferecia ela para os amigos assim, de brincadeira, a cabeça trabalhava. A gente ria e barganhava o preço, por brincadeira, mas a cabeça movimentava ideias.

Mas escuta o que eu vou te contar (e essa, quem aprontou foi o próprio irmão desse fulano que bebia): Naquele dia, veio vinho e vinho até que o homem não parava mais sentado. O churrasco era na casa desse senhor. O homem dormia na cadeira, tchuco que dava dó. E era apenas de manhã. Bom, acho que tu sabes onde essa história vai acabar, mas deixa eu contar: O irmão deste, que era mais íntimo da casa, pegou o homem e carregou até o quarto, para ele dormir um sono e não incomodar no jogo da escova. Maldito vício da bebida. Ficamos nós na área, jogando escoba, e as mulheres na cozinha, com suas coisas, e a piazada brincando com os cachorros no riachinho que passava detrás da casa. No fim já era hora de começar o churrasco. Eu fui pros lados da casa ajudar com o fogo. Naquela época eu já tinha uns trinta e poucos anos, tinha filhos e tudo.

De repente, vem um piá, mandado da mãe pra chamar o pai, que era pro pai correr pra casa ligeiro que as vacas tinham rebentado a cerca de novo e escaparam pra estrada. Tocamos o guri pra cozinha, porque achávamos que o pai dele estava lá, salgando a carne. Mas o piá voltou, porque o pai não estava lá; e junto veio as reclamações das mulheres para saber onde se metera a Josefa, que elas precisavam de saber onde que ela guardava os ovos pra maionese e não sei o quê...

Se entreolhamos e eu dei um grito: Pedro, toca pra casa que a tua alemoa mandou o guri te chamar, que as vacas estão na estrada. Gritamos assim, porque é mais fácil do que sair pra lá e pra cá procurando, porque a casa era bem grande, tinha a estrebaria, o porão, a parreira, as fruteiras, como saber? E eu estava com o sete-belo na mão, não queria parar o jogo, e se aquelas vacas fossem longe teríamos todos que ajudar.

Mas o homem estava perto, num quartinho de visitas com a janela que dava bem do lado de onde estávamos jogando, na área. Ele, o pai, ouviu e gritou de volta: “guri, diz pra mãe que eu tô espetando a carne e que depois eu vou lá!” [risos]

Foi dias depois que fiquei sabendo, porque ele mesmo me contou, que naquela hora ele estava naquele quarto com a mulher do próprio irmão, que estava dormindo bêbado no quarto do lado. Isso é coisa que acontecia e que, de repente, muita gente sabia mas não falava nada. E era questão de minutos: enquanto a gordura pingava nas brasas ou enquanto se jogava uma rodada de escova: era o tempo que precisava pra se fazer uma dessas. Mas, como saber? De repente, se não fossem essas coisas, não se fazia festa! Como saber?

Se eu contei pra alguém? Um que outro. É como meu nono me dizia: A carne é boa, mas se o churrasqueiro não sabe salgar e espetar, ele vai deixar pra quem sabe. Daí não é o caso de espalhar pra todo mundo. É pra ir lá e ajudar.

2 comentários:

  1. Muito bom o texto... aliás, como sempre!

    Quando eu tiver um jornal vais ser meu colunista!

    Abraços.

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  2. Está aí uma boa ideia! Um jornal. Quanto custa para montar um jornal? Nem que fosse estilo panfleto à miguelão...
    Poderia se chamar A Pândega, e conter um caderno infantil chamado "Charlie Brown não vai à Missa"...

    Meu Deus, de novo estou tendo ideias medonhas...

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