terça-feira, 12 de julho de 2011

O pai a vapor

Seu Antônio chegou ninguém sabe de onde e instalou-se ao pé do pequeno morro, não do lado onde passava a estrada de terra (que descia em direção à Capital), mas do outro.
Construiu a sua casa e constituiu família, trabalhando como agricultor, na base da pequena elevação de terra que o protegia (acreditava ele) do Minuano.
O tempo passou. Antônio assistiu ao nascimento de uma filha e ao desaparecimento da pequena elevação de terra, que fora removida para dar lugar à linha férrea, construída entre a sua casa e a estrada.
Em pouco tempo o lugar paradisíaco que Seu Antônio escolhera para morar havia se transformado num bonito e movimentado vilarejo, que continha até uma plataforma de embarque. Plataforma instalada bem em frente à casa de Antônio que, ao contrário da reação que teríamos hoje, ficou muito feliz por ter sua propriedade tão bem posicionada e valorizada. “Fiz uma boa escolha”, pensava ele toda a quarta-feira, quando o trem passava pelo vilarejo, enquanto olhava a beleza das pessoas e das coisas ao seu redor.
Um pássaro que voasse no sentido leste-oeste, ao olhar para o chão veria, nesta ordem: a estrada de terra que descia a serra em direção à Capital, uma linha férrea que ladeava a estrada até o vilarejo, uma belíssima plataforma de embarque (que, inclusive, contava com casinhas para abrigar os pombos famintos), uma pequena rua cuidadosamente pavimentada e, por último, a casa de Antônio (tudo minuciosamente alinhado, disposto em linhas paralelas). Mas o que realmente encantava o olhar dos pássaros era a plantação de milho de Seu Antônio, situada atrás de sua casa. Encantava, não tanto pela abundância de sementes, mas principalmente pelo formato triangular da propriedade. As terras de Seu Antônio tinham o formato perfeito de um triângulo equilátero. Essa peculiaridade devia-se ao fato de que a propriedade era cuidadosamente (e literalmente) cercada pelos trilhos do trem. Tal triângulo ferroviário era o recurso utilizado na época para “manobrar” a locomotiva a vapor, quer dizer, colocá-la na direção oposta a que estava anteriormente, de modo que pudesse retornar pelo mesmo caminho por onde viera. E funcionava assim: A locomotiva chegava ao vilarejo e parava na plataforma e, enquanto os passageiros subiam e desciam dos carros, o maquinista desconectava-a dos vagões e a fazia seguir em frente até ultrapassar o primeiro vértice. Em seguida, em marcha à ré, seguia pela segunda face do triângulo até o próximo vértice, quando a locomotiva tornava a andar para a frente até encontrar a terceira face do triângulo, onde voltava a conectar-se com os vagões, desta vez na outra extremidade do conjunto de carros, estando, desta forma, pronta para retornar pelo mesmo caminho.
De fato, o trem não “passava” pelo vilarejo. Apenas tocava-o para depois retornar.
Depois de executar tantas tarefas pesadas, o maquinista tinha direito a um merecido descanso antes de seguir viagem. Uma pausa de dez minutos. Descansava invariavelmente encostado à parede da casa de Seu Antônio, ao lado de uma janela com floreira por onde Anita, filha de Antônio, servia ao maquinista saborosas xícaras de café.
Não demorou para o pai de Anita perceber que eles poderiam estar apaixonados e que,  por causa disso, deveria ter uma conversa com o possível pretendente.

- Olá! Disse Seu Antônio.
- Olá.
- Não estaria na hora de o senhor ir até a locomotiva liberar o excesso de vapor?
- Ah, não, Seu Antônio. Nesta semana a Companhia instalou uma válvula automática que libera o vapor excedente automaticamente. É uma joia!

Na semana seguinte o trem tornou a visitar o vilarejo. Todo o procedimento se repetiu e o condutor foi (como sempre) até a janela degustar o café de Anita. Convencido de que deveria dar um jeito naquela questão, Seu Antônio foi novamente ter com o maquinista:

- Olá!
- Olá!
- Não estaria na hora de o senhor ir até a locomotiva e fazer soar o apito para avisar os passageiros que o trem está para partir?
- Ah, não, Seu Antônio. Ontem a Companhia acabou de instalar outro dispositivo automático, uma espécie de relógio que faz com o que apito soe automaticamente no horário exato da partida. Uma joia!

Na semana seguinte, Antônio continuou a observar o maquinista, que desta vez descera da locomotiva antes de executar as manobras costumeiras, e dirigira-se direto à janela onde a bela moça já o aguardava com o café. Seu Antônio já o esperava para a prosa costumeira.

- Olá!
- Olá! Respondeu o maquinista.
- Será que, por causa do saboroso café de minha filha, o senhor não se esqueceu de manobrar a locomotiva, como de costume?
- Ah, não, Seu Antônio. A Companhia acabou de instalar um complexo mecanismo e um conjunto de alavancas nos trilhos que permitem que a locomotiva execute esse trabalho automaticamente.

E os três ficaram observando a grande máquina fumegante que, sem qualquer auxílio humano, soltara-se dos carros, percorrera o triângulo e voltara a conectar-se na outra extremidade do comboio. Depois do espetáculo os homens voltaram a conversar.

- Uma joia! Disse o maquinista. Daqui a alguns minutos ela, sozinha, dará o apito da partida e eu saberei que é hora de ir embora. Se eu não tomar cuidado ela parte sem mim.
- Pelo visto, em breve a Companhia não vai precisar mais de maquinistas.
- Na verdade já não precisa, ela só necessita de alguém para abastecer o reboque com lenha e carvão, acender a fornalha da locomotiva e fazer a limpeza da caldeira no final do dia.
- Vejo que não tenho saída. Então... será que não está na hora de o senhor ir até o meu machado, abastecer a minha caixa de lenha e acender o fogão para o nosso almoço?

Assim o maquinista casou-se com a filha do Seu Antônio. Passou a trabalhar numa pequena fábrica de panelas, operando as máquinas a vapor que impulsionavam as lixadeiras. Logo construiu uma casinha em seu próprio triângulo de terra que, rumando com a propriedade de seu sogro, fazia com que a terra de ambos constituísse um bonito losango.
Foi uma boa escolha”, pensou Antônio, enquanto produzia fumaça com seu cachimbo.

*
*          *

Bem, é chegada a hora de pedir desculpas ao leitor porque até o presente momento o fizemos acreditar que o protagonista desta história fosse Seu Antônio. Mas não. Creiam ou não, nossa personagem principal é a própria locomotiva. E se até agora não lhe demos um nome é porque acreditamos que também ela não passe de mais uma personagem plana, como Seu Antônio, Anita ou o maquinista. Ademais, a singularidade da personagem dispensa o uso de um nome.
O fato é que o tempo foi passando e a locomotiva foi sofrendo modificações. As constantes melhorias e atualizações promovidas pelo Companhia logo possibilitaram que a locomotiva trabalhasse por conta própria. Em pouco tempo ela estava de posse de inteligência e vontade própria. Aprendeu a ouvir e a falar. Deixou de ser um equipamento com preço e proprietário para, através de um longo processo judicial, ganhar a sua liberdade. Deixou de ser escrava para tornar-se sócia da Companhia.
As pessoas gostavam de viajar nela. Os mais íntimos conversavam, trocavam conselhos e confidências, dicas de amor, culinária, calúnias e canções típicas. Ela era o orgulho da comunidade.
Houve festa no dia em que ela recebeu uma importante modificação patrocinada pelo Tigers Club local: um conjunto de pneumáticos e sistema de direção. Daquele dia em diante ela poderia andar em qualquer local. Não estaria mais limitada aos trilhos.
Agora a locomotiva frequentava festas, ia à igreja, reuniões de partidos, jogos de futebol, enfim, tudo o que um cidadão normal poderia fazer. Inclusive acessar a Previdência Social.
Aposentou-se e, de repente, numa manhã em que degustava um novo tipo de carvão mineral de ação prolongada, sentiu-se inundada por uma sensação diferente e, até certo ponto, atormentadora. Percebeu que talvez fosse incapaz de morrer.
Lembrou-se dos funerais de Seu Antônio, Dona Anita, e do seu amigo maquinista. Lembrou-se também de pessoas ilustres que já partiram. Estavam mortos há muitos anos e pensou que talvez devesse levar-lhes flores no cemitério. A locomotiva, materialista que era (e sabedora de sua origem mecânica), não estava bem certa de que a vida continuava do outro lado, apesar de ser uma assídua frequentadora da Igreja.
Ela percebeu, então, que jamais poderia amar alguém a ponto de ter filhos. Costumava assistir prazerosa aos adeus e despedidas de famílias inteiras nas plataformas de embarques, e sabia que, por mais tecnologia que incorporasse, jamais teria o privilégio humano de ter uma família para abraçar, rir e chorar, ou deixar heranças, conforme fosse o caso.
Diante disso, ela própria determinou que sua família seria o próprio povo do vilarejo. E ela não estava de todo enganada. Aquela gente era, de algum modo, uma espécie de família que ela ajudou a construir. Decidiu que aqueles habitantes seriam, a partir daquele dia, seus próprios filhos e filhas.
Pensou em como avisar as pessoas sobre isso e concluiu que a melhor forma de se mostrar (ou de agir) como pai e mãe daquele povo seria colocando-se numa posição em que pudesse exercer liderança (tal qual um pai) e oferecer conforto (como uma mãe). Candidatou-se à prefeitura local.
Depois de uma breve disputa com a oposição (“aquela gente que vem de fora pra mudar nosso jeito de falar” – diziam as pessoas) ficou acordado, por vontade geral da população, que ela (a máquina) teria o direito a candidatar-se até mesmo ao cargo de Bispo, se o desejasse. Candidatou-se e, como o previsto, elegeu-se prefeito municipal. Naquela ocasião mandou construir uma outra locomotiva, parecida com ela mesma, que continuaria a visitar o vilarejo e alegrar os moradores e visitantes, muito embora não fosse permitido que aquela réplica tivesse dispositivos automáticos.
Ainda hoje, passados muitos anos, aquela máquina detém o poder na região, embora não se admita mais locomotivas nos cargos públicos. Na verdade, aquela gente que ela considerou seus filhos cresceu e, hoje, poucos sabem que aquela máquina existiu e ainda existe. Atualmente ela continua a governar a região com mão de ferro (literalmente), escondida no seu galpão, soltando baforadas do seu belo cachimbo. Ela é, agora, uma espécie de poder oculto, que governa não só a coisa pública às escondidas, mas também boa parte das das maiores empresas privadas da região, embora a maioria das pessoas prefira acreditar que são governadas por representantes legitimamente eleitos. Parece que o povo do vilarejo não precisa mais de um grande pai comum e, por isso, a locomotiva passa os seus dias trancada no seu galpão, angustiada e deprimida, dando ordens aos seus correligionários (eleitos ou não) e tendo sonhos suicidas em que o antigo maquinista substitui o carvão de sua fornalha por gelo e neve.
 
Mal sabia Seu Antônio que no futuro o seu vilarejo seria todo cercado por trilhos de trem, que as propriedades seriam todas limitadas por infinitas conexões ferroviárias e que as próprias pessoas passariam a estar ligadas por trilhos invisíveis controlados por aquela engenhoca maravilhosa que manobrava e apitava automaticamente em frente a sua casa. Mal sabia Seu Antônio, na sua inocente boa vontade, que somente os pássaros que sobrevoavam a estação férrea estariam livres daqueles terríveis trilhos.

6 comentários:

  1. Já estou com o dinheiro para a publicação do teu livro guardado! Vamos ficar ricos e dominar o mundo!!!

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  2. Vamos ficar ricos se a Maria-Fumaça permitir, né...

    Acho que esse livro não vai entrar na lista dos "livros que mudaram o mundo", mas talvez entre na lista dos "livros que mudaram o Bairro Bela Vista", hahahahaha.

    Abraços!

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  3. Hahaha! Tu és doido!
    Muito boa sacada!

    Amplexos,
    A

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  4. Loucura pouca é bobagem!

    Amplexos pra você também, anônimo A.

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  5. CARAMBAAA,

    Muito bom seu espaço!!E que alegria encontrar tanta macacada por aqui; AMOO esses animais;))
    Grazie pela visita ao per-tempus e pelos comentários gentis; Estou me encantando com tudo por aqui!!
    Bem-vindo caríssimo!!
    ósculo e amplexos;))

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  6. ôlá! Obrigado pela visita. Espero que goste e que fique à vontade para comentar, dar pitacos, etc.

    Amplexos pra você também!

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