sexta-feira, 4 de maio de 2012

Quem tem medo de guitarra elétrica?

 
Às bandas de garagem: não temei a guitarra – temei, antes, o guitarrista

Sim, ainda há pessoas que chamam a guitarra de elétrica. Eu o faço por pura opção, para ser diferente (é que tudo parece tão igual, tão Tetra Pak). Tornar tudo mais simples do que é, é tarefa da televisão. Eu prefiro complicar. Complexar. O uso persistente do adjetivo "elétrico" serve até para lembrar a geração anos 2000 que existem coisas que não são espetadas na tomada. Eles duvidam, às vezes. Guitarra elétrica, baixo elétrico, panela elétrica e barbeador elétrico. Tem gente que não conhece a outra versão desses instrumentos e utensílios.

***

Reza a lenda que, quando São Pedro fica na dúvida sobre se uma pessoa pode ou não entrar no Céu, costuma aplicar um teste bem simples. O teste consiste em desenhar uma pessoa ou coisa que o candidato ao paraíso admire muito. Pode ser o pai ou a mãe, pode ser uma personalidade, ou até mesmo uma personagem de J. L. Borges ou um monstro de H. P. Lovecraft. Desde que admirado pelo falecido, por quaisquer que sejam os motivos.
Numa dessas, dois irmãos gêmeos chegam às portas do Céu. Logo percebem que lá há varais com milhares de quilômetros de comprimento, todos ocupados pelos desenhos mencionados, presos com prendedores do roupa. Eles têm a impressão de que tudo o que existe ou existiu na face da terra está lá, representado naquelas ilustrações.
Após tocar a campainha do balcão, os irmãos veem São Pedro se aproximar.
Ele confere os nomes, verifica a lista e torce o nariz.
- Infelizmente, os dados que eu tenho aqui não são conclusivos. Vocês vão ter que fazer um teste. Se passarem, entram no Céu.
Os irmãos trocam olhares aflitos, mas não ousam pedir para onde iriam se não passassem.
São Pedro explica como é o teste. Entrega aos irmãos uma folha A4, um lápis e uma caixa de lápis de cor com 12 unidades.
- Lembrem-se que o objetivo não é a perfeição. O próprio Walt Disney fez esse teste e foi uma desgraça, embora os desenhos ficaram muito bons. Eu os guardo até hoje, querem ver?
Os olhares, dessa vez, foram mais aflitos.
- Podemos conversar durante o teste?
- É claro que podem. Isso aqui não é a escola!
Um irmão olhou para o outro e disse:
- Vamos desenhar a mesma coisa e do mesmo jeito. Estivemos juntos até agora, então faremos o mesmo desenho e vamos juntos para o Céu ou para o Inferno.
- Não mesmo! Não quero passar a eternidade no inferno por sua causa ou arrastar você comigo por causa do meu desenho. Cada um desenha o seu.
- Sábias palavras, interferiu São Pedro.
Os irmãos sentiram que São Pedro torcia por eles. Então concordaram:
- Certo, cada um desenha o que quiser. Mas posso saber o que você vai desenhar?
- Claro. Vou fazer um Jimi Hendrix!
- Tu louco? Quer ir pro inferno de vez?
- Olha, vamos ser honestos pelo menos desta vez. É nossa última chance. Acho que agora é meio tarde pra gente se fazer de santinho...
- Sábias palavras, interferiu, de novo, São Pedro.
Então os irmãos fizeram seus desenhos e entregaram a São Pedro. O santo os analisou. Olhou. Olhou de novo. Franziu a testa. Finalmente, com uma voz que ironizava o tom de solenidade, proferiu o veredicto:
- Você aí, que desenhou Jimi Hendrix, pode passar pelo portão que dá acesso ao paraíso. Seja bem vindo!
- E eu? Perguntou o outro.
- Bom, você teve sua chance, mas, infelizmente, ainda não sei o que fazer com você...
- Mas como pode? O meu irmão fez um homenzinho de palitinhos. O meu desenho ficou bem melhor e, além do mais, eu também desenhei um astro do rock que, pelo menos, não é drogado nem nada!
- Meu filho, você desenhou o P. Lanza, do Restart!
- E só não desenhei toda a banda porque faltou cores. Malditos lápis, se você tivesse me dado um Tablet...
- … já pro Inferno!

***

As pessoas descobrem coisas, o mundo muda, a carroça anda. Mas, às vezes, parece que anda para trás. Parece não. Anda mesmo. As coisas vão passando de manual para automáticas, elétricas, eletrônicas, psicotrônicas e sabe-se lá até onde vai essa "evolução" da tecnologia, mas o uso que se faz delas parece não acompanhar tal "progresso". Da máquina de escrever para o MS Office 2007 ocorreram mudanças brutais na forma de editar textos, mas não vi mudanças igualmente brutais na qualidade dos autores, por exemplo. No mundo da música, então, nem se fala. Com o salário de um ou dois meses de trabalho em qualquer profissão de nível fundamental é possível comprar computador e microfones para fazer gravações caseiras com qualidade de fazer inveja a qualquer músico dos anos 80. O acesso às tecnologias, quaisquer que sejam, está mais fácil do que noutros tempos, mas o resultado é contraditório: no YouTube há mais de 13 milhões de acessos a algo do tipo "para nossa alegria", enquanto que verdadeiros poetas continuam enterrados no anonimato de sempre. A arte (a música, sobretudo) continua a mercê do capital que, como sempre, dita, através da caixinha mágica (TV), quem deve ser aplaudido e quem deve ser vaiado, conforme critérios comerciais. Aliás, segundo a TV, todo o resto é pressupostamente vaiável até ordem em contrário.
A prometida era da informação não nos proporcionou informação alguma. Os mesmos muros que separam as pessoas no “mundo real” estão começando a cercar o “mundo virtual” (vide SOPA, PIPA, etc.) Há um mar sem fim de informações desconexas e sem nenhuma profundidade. Atualmente, para decepção de muitos que viveram naqueles primeiros anos, a Internet não passa de mais um supermercado. Só isso. E blogues como esse não são mais do que um palavrão na porta de um banheiro.
Não é de hoje que o desenvolvimento tecnológico deixou de me impressionar. A ciência e a tecnologia não são nenhuma terra prometida. São apenas engrenagens de uma máquina cuja função é fazer produzir e consumir eternamente. Na maioria das vezes, ciência e tecnologia são duas senhoras, inteligentíssimas, que passam a maior parte do dia programando as obsolescências do amanhã para que a velha roda continue a girar. Sempre do mesmo jeito.
Bem, ao menos parece que as guitarras elétricas escaparam da obsolescência planejada. Já a música que se faz com elas...


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Perturbe a ordem. Comente!